quarta-feira, outubro 26, 2016

(L) «O Mar» de John Banville (III)

Na abordagem ao romance de John Banville comecemos por recordar que se trata da narrativa de um velho, acabado de enviuvar, e disposto a reencontrar a infância alojando-se como hóspede na casa aonde conhecera o seu primeiro amor.
Essa excitação de quem acabara de chegar à puberdade foi suscitada por Connie Grace, a mãe dos miúdos com quem andava a brincar nesse distante verão, Chloe e Myles.
Sobre ela evoca: “é o lado mortal dela, e não o divino que continua a brilhar para mim, ainda que com um brilho embaciado, no meio das sombras do passado desaparecido. Na minha memória, ela é a encarnação, o avatar de si mesma. O que é mais real, a mulher reclinada no espaço relvado das minhas recordações, ou a poeira e os ossos ressequidos que é tudo o que a Terra conserva dela para sempre?” (pág. 76).
Essa paixão acaba por ser de muito curta duração, porque o jovem Max depressa se entusiasma com as oportunidades propiciadas por Chloe nos jogos eróticos cuja pertinência começa a descobrir como obsessivos.
“Chloe, Myles e eu passávamos a maior parte do dia no mar. (...) Conseguia percorrer grandes distâncias sem parar, o que fazia com frequência, desde que tivesse audiência, agitando os braços em braçadas firmes até me sentir esgotado e esgotar a paciência dos mirones na praia”. (pág. 87)
Basta o estímulo para visualizar estas revelações do narrador para eu próprio me deixar embalar pelas que vivi na adolescência. Existe, nesse aspeto, um paralelismo entre a minha idade atual e a de Max enquanto narrador desse longínquo passado, para o qual ele também me remete. Quão distantes vão esses tempos em que, com dois amigos, nem sequer pensávamos nos riscos e nas consequências e partíamos da margem para avançarmos oceano adentro até vermos os prédios da Costa da Caparica lá muito para trás.
A decisão do regresso tinha a ver com o súbito arrefecimento do corpo causado por correntes mais frias, que não sentíamos capazes de nos arrastarem para além de onde nos encontrávamos.
Era um tempo em que os nadadores-salvadores davam mais liberdade a quem se aventurava fora de pé e possibilitavam a sensação de não se criarem limites ao desejo de sempre nos superarmos. E saber que, meio século passado, me limito a ir uns minutos ao banho dar uns breves mergulhos , ficando o resto do dia de praia à sombra do coqueiro.
No romance Max irá conhecer a experiência do primeiro beijo na sala escura do cinema da aldeia: “Os lábios de Chloe estavam frios e secos. Senti o gosto da sua respiração premente. Quando, por fim, com um estranho suspiro sibilante afastou o rosto do meu, senti uma luz tremeluzente percorrer-me a espinha como se alguma coisa quente se tivesse subitamente liquefeito e escorresse ao longo dela”. (pág. 92)
Sinceramente nunca tinha lido tão original descrição da primeira vez que um protagonista terá sentido os lábios de quem lhe prodigalizava o primeiro amor.

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