terça-feira, outubro 25, 2016

Amadeo no dia dos 98 anos da sua morte

Um dos grandes equívocos artísticos nacionais é Amadeo de Sousa Cardoso. A família fez tudo para que fosse artista, mesmo com a reprovação benevolente do pai. A viúva, Lucie, andou décadas a promover-lhe a obra em Paris. A Gulbenkian vai renovando sucessivas retrospetivas para tentar que dessa vez é que sim, ele será reconhecido como o grande pintor que querem dele fazer. As instituições de poder não regatearam apoios para a exposição do Grand Palais, entre abril e junho, que contou até com as presenças do presidente e do primeiro-ministro, mas a que os parisienses e a sua imprensa ficaram indiferentes. E o esforço continua como se viu com o programa desta semana de Paula Moura Pinheiro, que o dedicou uma vez mais ao pintor.
Tem sido cá uma sucessiva campanha de marketing, que acabamos por sentir indigesta uma obra cujo maior mérito é o de provir de um pintor precocemente desaparecido com trinta anos e a quem se pode sempre colar a pergunta: se tivesse vivido mais anos aonde teria chegado?
É aí que a questão melhor se presta à maior das ambiguidades: quem nos diz que ele continuaria a pintar obras com o talento constatável nas que lhe conhecemos, mas cujo valor pretendem sobrevalorizar como não se enquadrando nalgumas das escolas maioritárias da época.
Deveras? Olham-se para muitas dessas obras e reconhecemos-lhes as influências óbvias de Cézanne nuns casos, dos cubistas noutros, dos Delaunays ainda noutras e até Matisse por lá se encontra. Não é por, nos seus escritos, Amadeo se confessar avesso a essas influências, que elas nos não entram pelos olhos adentro quando apreciamos as suas obras.
Com admiração bacoca, Paula Moura Pinheiro admira-se por ele não se ter deixado deslumbrar pelo convívio com Picasso, com Modigliani e outros dos grandes nomes que então viviam miseravelmente em Montparnasse.
Deveras bis? Então, aos seus olhos de fidalgote de carteira abonada, Amadeu não olharia para aqueles colegas de ofício sem cheta como uns pobres a quem até prodigalizava uns cobres, porventura na mira de com eles ir conseguindo expor e, por arrasto, vampirizar-lhes a fama e o proveito?
Não esqueçamos que, tendo meios para isso, Amadeo procurava expor as suas obras um pouco por todo o lado para cumprir o sonho de se ver reconhecido como artista de mérito.
Voltando aos três pilares, que aqui já referi noutro texto como sendo os que José Mário Branco reconhece fundamentais para apreciar a obra artística, Amadeo tinha inegavelmente talento e técnica, mas quanto à ética que dizer?
Politicamente era talassa e execrava o regime republicano. Por isso não se eximiu de inserir referência explicita ao jornal «Dia» num dos seus quadros, homenageando assim os que tudo faziam para inverter o rumo tomado pelo país com a revolução do 5 de outubro de 1910.
Era, igualmente, e como fruto do ambiente em que foi educado, profundamente católico no que isso corresponde a uma confirmação da mentalidade intrinsecamente conservadora.
Mas, com isso tudo, como é que a sua obra consegue romper de forma tão absoluta com os padrões académicos, interroga-se a mesma Paula Moura Pinheiro, fingindo ignorar algo que a História conservou como evidência: nesse período de afirmação das vanguardas, muitos dos que cultivavam a estética futurista adeririam entusiasticamente ao fascismo. Aconteceu com o italiano Marinetti, mas também com o nosso Almada Negreiros.
Justifica-se então fazermos, por uma vez, aquilo que sempre se desaconselha, mas constitui estimulante hipótese académica: história prospetiva. E a questão é esta: com tudo quanto dele sabemos, se não tivesse morrido de pneumónica faz hoje 98 anos, no que se teria convertido Amadeo com a instauração do regime fascista em Portugal?
Poucas dúvidas me ficam de que se tornaria num dos seus mais acérrimos defensores, associando-se a António Ferro para garantir uma caução cultural ao regime. Se a Almada ficariam reservados os murais das estações marítimas e a Leopoldo de Almeida a mais importante estatuária, Amadeo garantiria por certo lugar privilegiado nos quadros de promoção do Estado Novo. O pobre do Henrique Medina, que se cuidasse, pois às tantas ficaria sem préstimo como retratista dos finórios de então.
A tal ter acontecido ainda olharíamos para os quadros de Amadeo com a inocência com que querem que os apreciemos? 

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