domingo, outubro 23, 2016

(L) «O Mar» de John Banville (II)

Para Max Morden, narrador do romance de Banville, “não passamos de pequenos botes de tristeza a viajar num silêncio lânguido por entre as trevas outonais”. (pág. 48)
Como vimos em texto anterior, ele enviuvara recentemente e decidira hospedar-se durante algumas semanas na sua pequena vila natal, local apropriado para fazer um balanço de tudo quanto vivera e, sobretudo, resgatar uma infância tão determinante para transformá-lo em quem fora.
Não admira que escreva: “ainda subsiste em mim uma parte desse rapaz que era então. Por outras palavras, um rapaz rude com uma mente perversa. Como se houvesse outras. Nunca crescemos. Seja como for, eu nunca cresci”. (pág.50)
O que recorda de Myles, um dos filhos do casal Grace então instalado na mesma Casa dos Cedros onde agora alugara um quarto, não é nada benevolente: “Myles era mudo desde a nascença. Ou melhor dizendo, nunca tinha falado. Os médicos não conseguiam encontrar uma explicação para esse silêncio obstinado, confessando-se  perplexos, céticos ou ambas as coisas”. (pág. 55)
Mas a benevolência torna-se, amiúde, perversa: “aquilo que Myles mais me fazia lembrar era um cão que tive em tempos, um terrier de um entusiasmo irrefreável, de que gostava muito, mas que, de vez em quando, quando não havia ninguém por perto, espancava cruelmente, pobre Pongo, só pelo prazer furioso e excitante que retirava dos seus uivos de dor e dos latidos de súplica”.  (pág. 56)
Chega-se aqui a uma fase em que me reconheço particularmente: em miúdo procurava adivinhar, que adulto seria eu. E via esse tempo como o de uma enorme serenidade, já liberto de todas as inquietações justificáveis então. E ao contrário do protagonista, que se imaginara exatamente como era, eu nunca pensei no tipo de experiências, que me trouxeram até à condição de sexagenário.
“Quando perscrutava ansiosamente as névoas daquele tempo então demasiado real em busca do «agora» voluptuosamente imaginado, era assim exatamente, como já disse, que antevia o meu futuro «eu», um homem com interesses ociosos e de escassas ambições, sentado numa sala como esta na minha cadeira de lobo-do-mar, apoiado no tampo da mesa, nesta precisa estação do ano, a ver o dia declinar num clima ameno, as folhas a cair, a luminosidade dos dias esmorecendo impercetivelmente e os candeeiros da rua a acenderem penas um poucochinho mais cedo com o cair da tarde.” (pág. 62)
Que diferença entre a atual tranquilidade e o passado recente em que acompanhara a lenta degradação da mulher até à morte: “Durante a doença, para Anna as noites eram o pior de tudo, como era de esperar. Tantas coisas previsíveis, agora que chegara a última coisa esperada. No escuro, toda a incredulidade angustiada do dia - isto não me pode estar a acontecer! - dava lugar a uma perplexidade entorpecente e apática.” (pág. 64).
No próximo texto veremos como Max irá sentir a primeira paixão arrebatada e viverá a experiência erótica do beijo. 

(Gerhard Richter)

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