quarta-feira, outubro 05, 2016

(L) Corpo e Alma (III)

Durante muitos séculos a Natureza focalizou a atenção dos teólogos, filósofos e outros pensadores relacionados com as três religiões monoteístas. Se nas civilizações da Antiguidade imperava um paganismo, que dava natureza divina diversificada a todas as manifestações naturais, o advento do monoteísmo nas suas três ramificações atribuía-as no seu todo como decorrentes da vontade de um só deus. A polémica surgia, quando se discutia a possibilidade de alguns desses impulsos naturais ocorrerem à revelia dessa vontade superior.
Essa fronteira subtil entre a natureza e deus também foi a que se estabeleceu entre o corpo e a alma, sendo discutível onde acabava um e começava a outra. Aonde se poderia confundir o corpo com a natureza e o homem em si com os animais?
Essas questões começaram a ter respostas mais concretas nos séculos XVII e XVIII, quando as teses clássicas e escolásticas passaram a ser abandonadas em proveito de uma recuperação dos conceitos aristotélicos a respeito da Física e da Biologia. Multiplicaram-se, então, as teorias sobre a natureza da matéria e do movimento e relativas às origens do universo e da vida.
Uma das dúvidas então levantadas tinha a ver até que ponto os nossos comportamentos eram sujeitos ao juízo divino ou aos poderes terrenos. A natureza, para ser conhecida, passava a dispensar o crivo da sua suposta origem divina.
Thomas Hobbes descreveu o mundo, o homem e a mente em moldes exclusivamente materialistas e Descartes tudo quis explicar utilizando equações matemáticas. Os mecanismos mecânicos já então existentes - mormente em relógios! - explicavam plenamente o funcionamento do corpo sem nela intervir a alma. O cartesianismo assentava num dualismo em que o corpo material e a alma imaterial estavam completamente separados um do outro. Para o filósofo francês a grande diferença entre o homem e os outros animais era precisamente a inexistência de alma nestes últimos.
As conclusões de Descartes enfureceram uns quantos, que tentaram contrariá-las de forma a não pôr em causa os princípios fundamentais do catolicismo.
Um dos mais bem sucedidos contestatários foi o padre Pierre Gassendi, que recorreu ao atomismo de Epicuro para defender um universo inteiramente constituído por átomos em movimento, cujo impulso inicial fora dado pelo próprio deus. Por isso mesmo as emoções e as manifestações cognitivas da mente também eram materiais, não existindo separação entre o corpo e a alma, apesar da natureza imortal desta última.
Em Inglaterra o químico Robert Boyle também a adotaria, conjuntamente com o seu assistente, Thomas Willis, que viria a inventar o termo neurologia.
No século XVIII estas teses viriam a ser vigorosamente contestadas por quem defenderia a criação da alma a partir da génese do respetivo corpo.
(texto sugestionado pelo longo trabalho de Noga Arikha na mais recente edição da revista «Lapham’s Quarterly»).


Sem comentários: