quarta-feira, setembro 16, 2015

DIÁRIO DE LEITURAS: A História aprendida a partir de dois romances

1. Em França existe uma sólida tradição de edição de romances históricos, pelos quais se podem conhecer mais facilmente as vicissitudes ocorridas ao longo da sua História.
A meio do século XIX um dos autores mais em voga  era Joseph Arthur de Gobineau, que publicou «L’Abbaye de Typhaines» em 1848, dentro da sua habitual tendência para abordar a decadência do poder feudal desde a Idade Média.
A intriga passa-se no século XII com a revolta dos burgueses de Typhaines, organizados numa comuna para enfrentarem os monges da abadia vizinha, seus suseranos.
Essa dependência, porém, era muito recente, porquanto o anterior proprietário daqueles domínios era Geoffroy de Cornehant, que a pretexto de expiar um crime decidira vestir o hábito e entregar os bens à Abadia.
Quem não ficou nada satisfeito foi Philippe de Cornehant , que andara pelas Cruzadas, e se vê totalmente despojado de fortuna graças à imprudência do progenitor. E, à distância, o Rei provoca intrigas entre uns e outros a fim de dividir para melhor reinar. Mas com tão bons argumentos para um final galvanizante, Gabineau desperdiça-os e avança para o respeito da «ordem natural», conseguindo de Phillippe a salvaguarda dos monges de Typhaines que, em troca, solicitam a Roma a devolução dos bens paternos ao seu defensor…

2. Bastante mais interessante do que o anterior é o romance de Raquel Ochoa, que ando a ler: «As Noivas do Sultão».
O livro foi publicado há poucas semanas e remete-nos para o reinado de D. Maria I, quando aportaram ao Tejo duas embarcações com as concubinas de um dos principais  príncipes marroquinos, por sinal aquele que deveria assumir as rédeas do trono não se desse o caso de estar praticamente cego.
Estando o reino sacudido por violenta guerra sucessória, Abdessalam decidira acautelar o harém transferindo-o de Casablanca para Rabat sem imaginar que os ventos e as correntes o levariam para a Madeira, depois para os Açores e, finalmente, para a capital portuguesa.
É nessas circunstâncias que ganha relevância Frei João de Sousa, um franciscano com uma rica cultura arabista até por ter nascido na comunidade cristã da Síria e aqui ter vindo parar ainda antes do terramoto. É ele quem servirá de interprete entre o arrais, que lidera a expedição e o Ministro do Reino. Mas é também ele quem recebe, sub-repticiamente, o diário de uma das mulheres de bordo a quem estaria até proibido de olhar, quanto mais delas receber o que quer que fosse. E começa assim um mistério sobre o que se passará, de facto, dentro daquele mundo fechado sobre a qual a cidade começou a sentir uma enorme curiosidade.
Muito bem escrito e estruturado, o romance de Raquel Ochoa merece ser lido e divulgado, porque nos permite uma visão da História do final do século XVIII com o colorido só possibilitado pela ficção. Até por toda a intriga resultar de porfiada investigação da autora.
Como exemplo da qualidade aqui enaltecida, deixo aqui um extrato sobre o terramoto de 1755, tal qual Frei João o evoca, quando vai de coche a caminho da corte em Queluz, na companhia do arrais, que o interrogara sobre tal experiência de trinta e oito anos atrás:
“João encontrava-se em Lisboa, juntamente com um criado da casa de Morgado de Oliveira. Já estavam bem atrasados para a missa, demorando-se num armazém onde compravam uma série de víveres de que o morgado os encarregara. Não fazia parte das suas competências, mas como era feriado e aquele moço teria dificuldade em tudo carregar, João de Sousa voluntariara-se e, às nove e quarenta, quando se deu o primeiro abalo, encontrava-se à entrada de um velho edifício na Baixa da cidade.
No primeiro segundo de constatação esgazeada, ele e o terramoto entreolharam-se. Foi um primeiro solavanco. De repente todo o tempo antes daquele segundo eram horas velhas, vidas passadas, um tempo antes, o dos mansos suspiros - e nunca mais voltaria. Um sossego morto para sempre, chegara a inquietação. O solo que tremia um segundo na vida de uma pessoa tremeria para sempre.
De olhos hiantes, agarrou no seu companheiro. Já lhe via muito sangue ficado no barrote que quase lhe esmagara a cabeça. Na emo­ção e com a sua força viril, levantou-o do chão com um só gesto.
Uma dança apoderava-se das entranhas da cidade e agitava-a desde a base, das edificações faziam-se ruínas, dos telhados abriam-se crateras, dos cânticos àquela hora celebrados nas missas apoderavam-se berros dos homens e mulheres condenados.
A cidade bailava terrivelmente, sem consciência da delicadeza da vida humana e de todas as suas construções, sacudia-se pres­surosa, e enviava do centro da terra um gralhar ferino de abutres abandonados e esganados. No quarto segundo, Frei João já cor­ria para nenhures, com um defunto às costas, fugia dele mesmo, à semelhança de todos os outros, pelas ruas. Deparou-se com a aflição dos que, habitando a cidade, queriam, agora no desespero, ir o mais longe possível.
- As recordações devem ser penosas - interveio Scariage.
- Já se passaram muitos anos.
- Os relatos que chegaram a Marrocos foram deveras impressionantes. Acirrado, o vosso Deus naquele dia.
Frei João continuou em silêncio não porque ignorar aquela conversa fosse a melhor estratégia para se livrar da mesma, mas porque uma vez entrado no torvelinho daquelas reminiscências não se saía delas sem um profundo mergulho na tristeza e na miséria. Nesse recolhimento, na frieza dos pensamentos alojados em 1755, cheirou de novo o enxofre que o Tejo exalou sem pudor, o cheiro que envolveu mães a manterem filhos mortos agarrados ao peito, as fendas abertas na rua que podiam engolir cinquenta homens e os seus cavalos, os amputados que se arrastavam no silêncio constrangedor de quem percebe que perder membros é uma sorte perante tantos corpos sem vida. Ouviu os berros que gritou ao rapaz como para acordar um adormecido.
Pó levantado pelos escombros, mortos e moribundos, tantos feridos, tantos perdidos. Nem um minuto tinha passado. Quarenta igrejas na cidade e só cinco conseguiram o milagre de não desabar sobre os sacerdotes e fiéis.”


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