quinta-feira, junho 19, 2014

LEITURAS: «Mazagran» de José Rentes de Carvalho (2)

O livro de recordações e de outras fantasias, a que José Rentes de Carvalho deu o nome de «Mazagran», orienta-se por dois eixos temáticos principais: num deles o autor mostra como os holandeses têm evoluído nos seus comportamentos - a forma como cumprimentam, como atendem o telefone, como tratam dos seus animais domésticos - perdendo, pouco a pouco, as características inerentes à idiossincrasia luterana, que os tenderia a cristalizar na soturnidade austera dos gestos e das emoções.
Porque não é só o carinho, o conforto, o bom trato, mas toda a rede de previdências que, com as suas lojas especiais para o comer e o vestir, o seguro, os cuidados veterinários, próteses, cemitérios, serviço de ambulâncias, hotéis e asilos, distrações, e  até eutanásia, torna a sociedade dos animais quase uma réplica da nossa. Falassem eles entre si uma língua inteligível e não duvido que sem tardar disporiam de telemóvel. (pág. 62)
Noutro eixo temático, Rentes de Carvalho dá-nos o ensejo de ir conhecendo melhor a sua autobiografia feita de muitas evocações de infância - por exemplo a existência do «abafador», que cuidava de apressar o sofrimento aos judaizados temerosos de se verem a revelar o verdadeiro credo perante o padre católico chamado para a extrema-unção - e da forma quase casual como ele foi parar a Amesterdão e ali se radicou.
De nascença, pois, e fazendo parte do mais íntimo, possuo uma aversão poderosa contra o uniforme. Militar ou não. Porque com os seus galões e distintivos ele reforça o espírito de casta, é sinal de preferências, dá a ilusão  de autoridade, exige respeito, submissão, disciplina, impõe o que não deveria ser imposto: a ordem, mete medo e, talvez tão mau como tudo isso junto, incita ao espírito de rebanho. (pág. 55)
Não se tratando de grande Literatura, a prosa de Rentes de Carvalho lê-se com muito agrado porque escorreita e bem carpinteirada e, sobretudo, por trazer elementos interessantes de como era a vida quotidiana no Portugal dos anos 30 ou na Holanda do final do milénio.


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