Há escritores a quem a Academia Sueca jamais atribuiu o Nobel e nada se terá perdido significativamente com isso: um Graham Greene, um Jorge Luís Borges ou até um Jorge Amado.
Mas, apesar de a ter visto atribuir a distinção a escritores que muito aprecio - Saramago, Garcia Marquez, Le Clézio - bem teria preferido que alguns dos galardoados recentes (por exemplo Herta Muller) tivessem perdido para outro dos recorrentes ódios de estimação dos académicos em causa: Philip Roth.
Agora, já dobrado o cabo dos oitenta anos, o escritor norte-americano dificilmente verá premiada a sua obra vasta e de fácil leitura, onde se foi ao mesmo tempo analisando e à realidade que o rodeava.
Publicado em 2001, «O Animal Assombrado» aborda o conflito entre gerações, com as respetivas idiossincrasias a funcionarem numa lógica de regressão: David Kepesh, o narrador, é um velho libertino para quem a Revolução Sexual dos anos sessenta foi uma benesse, enquanto o filho vive um processo de culpabilização por um adultério patético, já que reproduz os mesmos esquemas mentais, que conduziram ao fracasso do seu casamento.
Mas, como de costume em Roth, está presente a sexualidade pura e dura, capaz de exasperar muitas feministas. Porque Kepesh não se prende em romantismos estéreis: para ele a atração entre dois seres tem uma conotação quase exclusivamente sexual:
“A grande partida biológica que nos pregam é que nos tornamos íntimos antes de sabermos alguma coisa acerca de outra pessoa. No momento inicial compreendemos tudo. Inicialmente, somos atraídos para a superfície um do outro, mas também intuímos a dimensão mais plena. E a atração não tem de ser equivalente: ela é atraída por uma coisa, nós pela outra. É a superfície, é a curiosidade, mas depois, zás!, pela dimensão. (…) O sexo é todo o encantamento necessário. Os homens acham as mulheres assim tão encantadoras uma vez excluído o sexo? Alguém acha alguém de qualquer sexo assim tão encantador, a não ser que tenha comércio sexual com essa pessoa? Por quem mais nos sentimos assim encantados? Por ninguém.” (pág. 23 na edição portuguesa da D. Quixote)
O facto do próprio Roth também ser sexagenário quando escreveu o romance torna óbvio o seu lado autobiográfico. O professor, que se enamora pelas suas alunas e só arrisca seduzi-las após concluído o ano escolar, é mais um dos alter egos do autor. Que por isso mesmo opera aqui a catarse sobre o seu próprio receio da velhice. E o quanto ela o leva a mostrar um ciúme quase doentio pela amante ao ponto de quase a tornar cúmplice de fantasmas masoquistas.
“Conseguem imaginar a velhice? É claro que não. Eu não conseguia. Não era capaz. Não fazia a mínima ideia de como era. Não tinha sequer uma falsa ideia - não tinha imagem nenhuma. E ninguém quer outra coisa qualquer. Ninguém quer enfrentar nada disto antes de não ter outro remédio. Como vai ser?” (pág. 37)
Um dia, tendo a noção de viver uma relação cada vez mais obsessiva e descontrolada com uma jovem de origem cubana com menos de metade da sua idade, Kepesh força a rutura, escusando-se a comparecer na festa com que Consuela celebra o seu diploma universitário.
“Ela tinha ido até onde queria. A única coisa que eu podia ter feito, continuando, era torturar-me ainda mais. A atitude mais inteligente que tomei foi a de não aparecer lá. Porque tinha andado a ceder, a submeter-me de maneiras que não compreendia. O desejo nunca desaparecia, nem mesmo enquanto a tinha. A emoção principal, como já disse, era o desejo ardente. E ainda é. Não há alívio para esse desejo nem para a minha noção de mim mesmo como suplicante. (pág. 83)
Mas, como de costume em Roth, ainda estamos longe de ver esgotadas as nossas surpresas: quando Consuela o volta a contactar é para lhe dar conta do seu terrível cancro, que lhe poderá ceifar a vida ou, no mínimo, amputá-la da parte do seu corpo com que o amante de outrora tanto fantasiara: os seios.
Temos, pois, a presença da velha interligação entre Eros e Thanatos, mas de forma particularmente dramática, porquanto um exclui necessariamente o outro. De facto, a expectativa de a saber ameaçada tolda-lhe qualquer veleidade de desejo sexual:
“ Eu não poderia ter dormido com ela, nem mesmo eu que lhe lambera o sangue. Depois de anos a remoer sobre ela, só vê-la teria sido muito difícil se ela aparecesse em circunstâncias normais e não deste modo estranhamente desditoso. Por isso, não, não teria sido capaz de dormir com ela, apesar de continuar a pensar nisso. Porque eles, os seios, são tão belos. Nunca me canso de o dizer. Era tão cruel, tão degradante, aqueles seios, os seios dela. Pensei apenas: não podem ser destruídos!” (pág. 114)
No final ficamos sem saber se Consuela resistirá ou não à sua operação. Mas isso de pouco importa: o fascínio já se foi e deixou apenas uma amarga recordação.
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