terça-feira, julho 10, 2007

BAPTISTA BASTOS: «AS BICICLETAS DE SETEMBRO»

Foi ao ler o registo biográfico sobre o autor, já acabada a leitura do seu romance, que descobri algo de curioso: na década de 60, quando trabalhava semiclandestinamente na RTP, o seu pseudónimo era Manuel Trindade.
Curiosa singularidade essa, a de ele ter escolhido um pseudónimo, que coincide com os meus dois nomes do meio. Que torna redundante uma empatia, que há muito se vem estabelecendo entre mim enquanto leitor e Baptista Bastos enquanto escritor.
Há muito que nele admiro a sapiência na utilização de uma língua, que ele aprendeu a amar nas prosas dos grandes jornalistas conhecidos nas redacções do «Século» ou do «Diário Popular» ou nos escritores superlativos com que chegou a privar: um mestre Aquilino, um José Rodrigues Miguéis, um José Gomes Ferreira, entre tantos outros.
O seu romance mais recente, «As Bicicletas de Setembro» é justificado pelo narrador a páginas tantas:
«Estas coisas não devem ser extintas da memória. Sei que outro daquele tempo escreverá um dia, acaso já escreveu, estes e novos episódios, adicionando-lhes pormenores que perdi, acontecimentos por mim não vividos nem sequer observados. Sei. O que me instigou ao registo avulso do que a memória permite é o medo da velhice, a tentativa de fixar aqueles instantes supremos, no interior dos quais julguei ser feliz. Já há muito que desisti de procurar o misterioso significado do mundo. Não faz sentido tentar descobrir porque é que as coisas acontecem desta maneira e não daquela. A felicidade nunca tocou no batente das minhas expectativas.» (pág.76)
A felicidade também não terá sorrido a Jesuína, a mulher que aparecera no seu bairro de miúdo, e ali encontrara refúgio de amargores de outros lugares.
Fechada em casa, ela alimenta uma tertúlia onde as vizinhas vêm trocas as suas bisbilhotices e falar dos seus desconsolos a respeito dos respectivos conjugues.
As conversas derivam para os temas mais íntimos e acabam por conferir ao ambiente dessas tardes uma certa lascívia.
Jesuína acaba por se responsabilizar, igualmente, por uns quantos rapazes e raparigas a ela confiados pelos seus ocupados progenitores. E transmite-lhes muitos dos saberes necessários para enfrentarem uma vida assaz complexa.
Mas Jesuína alimenta igualmente alguns mistérios irresolúveis: porque se recusa a sair à rua, só arriscando esse esforço já muitos anos depois, quando o seu prestígio no bairro dera lugar a um ostracismo eivado de maledicência? Quem seria o homem de negro tão rapidamente ali aparecido para a espreitar como logo desaparecido no nenhures donde viera? E que significado teriam os seus equívocos gestos para alguns dos miúdos, aos quais se associaria a sua perversa libidinosidade, que a tornariam odiada pelas antigas participantes das suas tertúlias?
«Aprendera que a noite pode ser devastadora. Reprimira o desejo, incandescente quando nova, e a tal ponto que suprimira das lembranças a violência dos desconcertos antigos. Emergiam, porém, num bulício de metáforas, sombras remotíssimas de amores passageiros: troncos nus, mãos, dedos, sexos que penetravam na sua vagina quente, húmida, maternal, acolhedora.»
A sua personalidade é controversa e sujeita-se à malvadez com que os desvalidos tratam os seus iguais, quando lhes apanham as fragilidades. Por isso acabará mais solitária do que nunca.
Para o escritor, a muitos anos de distância, justifica-se a homenagem: até porque, na sua imaturidade, também ele contribuíra com o seu relato nas tabernas a exagerar o que não haviam passado de indícios de pedofilia.
«Nunca quis muitas coisas. O que forma a minha e a tua vida foi a atracção mútua, embora nada nos aproximasse. Nem em dúvidas nem em certezas éramos semelhantes. Acreditavas em Deus, eu não só ignorava a Sua existência: desprezava-a. Hoje, admito que esse desprezo talvez contivesse algo de receio e de atracção. Como a morte: atrai-nos enquanto a repelimos. Detestavas os meus pequenos prazeres, fizeste-me amargar muitos deles com implacável zombaria: livros, músicas, filmes. Não merece a pena nomear as nossas divergências . Provínhamos do mesmo sítio, mas não pertencíamos aos mesmos sonhos.» (pág. 92)
Quando se conclui esta leitura, podemo-nos questionar a propósito de quantas Jesuínas estão à nossa volta: pessoas silenciosamente desesperadas, que não encontram sequer um conforto solidário a amenizar-lhes essa dor de se sentirem irremediavelmente sós.

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