quinta-feira, março 12, 2020

Diário das Imagens em Movimento: A Rosa Tatuada, um filme de 1955


Há filmes que envelhecem mal apesar de, na sua época, terem sido glorificados como obras de mérito. E é este o caso de A Rosa Tatuada, título que Daniel Mann realizou em 1955 e merecedor de oito nomeações para os Óscares. Ganhou três, dois deles indiscutíveis por contemplarem trabalhos de excelência nas respetivas categorias: James Wong Howe pela fotografia a preto-e-branco e Anna Magnani pelo principal papel feminino. E, de facto, mesmo mostrando-se demasiado datado, o filme deixa-se ver com agrado por essa interpretação telúrica da atriz italiana na sua estreia em produções norte-americanas.  A impetuosidade apaixonada com que ilustra as diferentes facetas da personagem Serafina Delle Rose contrasta com o overacting de Burt Lancaster no papel de um simplório com pouco tino na cabeça.
A peça de Tennessee Williams apresenta algumas das suas características mas, limada a sexualidade exacerbada dos personagens para não ofender a censura, e excluída a sátira à religiosidade dos emigrantes sicilianos, ficou numa espécie de coisa híbrida, que quase nunca é referida quando se pretendem trazer à colação algumas das principais obras do autor.
Apreciemos então o desempenho da Magnani enquanto mulher iludida pela relação amorosa, que tivera com o defunto esposo e resiste à ideia dele ter andado a traí-la com a croupier de um clube noturno. Se Serafina trouxera da Sicília um código de honra, que exigiria um luto interminável e uma feroz vigilância às intenções masculinas a respeito da única filha, a forma como no final se dispõe a atirá-lo para o caixote do lixo, entregando-se ao tonto cujo nome (Mangiacavallo) já definia por si mesmo a sua insólita originalidade, acaba por decorrer da abertura da urna onde guardava as cinzas do falecido, dela libertando o seu aprisionado coração.
Uma referência ainda para o ator, que desempenhava o papel do marinheiro interessado em levar a filha de Serafina ao altar. Ben Cooper, foi um daqueles secundários cujo rosto reconhecíamos em tantos filmes e séries de televisivas, mas cujo nome nunca fixávamos. Daí que a sua morte, há menos de um mês, tenha passado quase completamente despercebida, mesmo aos mais empedernidos cinéfilos...

terça-feira, março 10, 2020

Nas margens: As personalidades dos artistas e as suas obras


1. Numa semana em que participei na discussão de uma tertúlia de cinéfilos sobre a questão de poder ou não dissociar-se o artista da sua obra, apareceram-me à frente dos olhos alguns exemplos da arquitetura projetada por Antoni Gaudi para alguns edifícios no noroeste espanhol, muito distantes da sua Catalunha natal: El Capricho em Comillas, o Palácio Episcopal em Astorga e a Casa Botines em Léon.
A sua personalidade não me merece grande admiração, não tanto por privilegiar a misantropia, mas pela religiosidade que assumia estimular-lhe a criatividade. Para um ateu da minha estirpe um beato incomoda sempre alguma coisa. Mas como resistir à beleza da Sagrada Família, do Parque Güell ou à Pedrera? Eu que afianço quase nunca dissociar a obra de quem a assinou, sou obrigado a dar a mão à palmatória, enfileirando Gaudi com outros geniais criadores, com Bach em particular destaque, que assinaram obras notáveis, impulsionados pela fé.
As três obras, que Gaudi assinou nos intervalos dos seus afazeres em Barcelona, têm algumas das suas principais características, mormente a fantasia e os motivos mouriscos. E, embora ele as tenha pensado no contexto das paisagens em que seriam implantadas, todas elas acabam por sobressair como extravagâncias, que ainda mais as valorizam.
2. Na referida discussão sobre o artista e a sua obra veio ao de cima a personalidade de John Ford, que quase sempre se eximiu de pronunciar-se sobre questões políticas, mas demonstrou para onde orientava o seu pensamento em filmes de evidente simpatia pelos mais desfavorecidos face á força bruta dos que tinham por si as armas. Nos westerns, sobretudo nos últimos, os índios eram chacinados pelo exército colonizador, mais numeroso e melhor armado, mas também no inesquecível Vinhas da Ira em que deixava a mensagem óbvia de haver sempre um Tom Joad pronto para erguer-se do anonimato para defender os que precisavam do seu apoio. E há a denúncia da história americana como uma ilusão, feita de lendas muito diferentes das realidades, que ficaram clandestinas ou o momento determinante em que, numa reunião da Guilda dos Realizadores de Hollywood, desarmou a estratégia macarthista de Cecil B. De Mille contra os suspeitos de simpatias comunistas. Ele, realizador de filmes de cowboys levantou a voz para impedir que a histeria fosse levada ainda mais longe...

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segunda-feira, março 09, 2020

Nas margens: A pífia herança de um ano de viragem


Terrível o ano de 1979, de cujos acontecimentos ainda estamos a pagar com enormíssimos juros os inesperados custos.  No início desse ano os líderes dos quatro principais países ocidentais eram Jimmy Carter, James Callaghan, Helmut Schimidt e Valéry Giscard d’Estaing, mas nenhum deles era particularmente benquisto pelos governados. O primeiro-ministro inglês era o mais contestado: as greves dos sindicatos paralisaram a Inglaterra e até os mortos ficaram por enterrar por não haver quem o fizesse. Apesar de se tratar de um governo trabalhista, foram os sindicatos, com ele conotados, a precipitaram-lhe a queda e a abrirem caminho a Margaret Thatcher, que não tardaria a partir-lhes a espinha. Ademais, apesar de depressa se constatar a inadequabilidade da receita ultraliberal para infletir a crise britânica Thatcher contou com a ajuda providencial dos generais argentinos que, invadindo as Malvinas, lhe proporcionaram o toque a rebate, que manteve os conservadores no poder nos dezoito anos seguintes.
Mas convenhamos que as esquerdas radicais continuam a esquecer as reiteradas lições da História - como a de então! - quanto ao seu papel ativo na entrega do poder às direitas mais conservadoras.
Nesse mesmo ano de 1979 o xá do Irão fugiu do país, quase se cruzando no aeroporto com o aiatola Khomeini. A Revolução democrática, que milhões de iranianos saudaram na expetativa de recuperarem os auspiciosos tempos do governo de Mossadegh, depressa se viu espezinhada pelo fanatismo dos prosélitos do líder religioso. Uma vez mais a crise na economia tendia a corrigir o erro de lhe ter sido dada tanta primazia, mas a invasão iraquiana, decidida por Saddam Hussein, serviria de balão de oxigénio ao novo regime, que embandeirou a causa patriótica para reprimir sem contemplações quem se lhe opôs.
No Vaticano foi empossado o polaco Karol Wojtyla, que hoje sabemos ter sido protetor de pedófilos mas ainda é celebrado pelo conluio com a CIA para acabar com o comunismo na Europa do Leste. Lamentavelmente também foram os operários de Gdansk a darem tiros nos pés secundando a ação conspirativa do clero polaco. Como prémio ver-se-iam a breve trecho condenados ao desemprego, porque a viragem para o capitalismo selvagem significou o fecho dos estaleiros onde tinham ganho o sustento durante décadas.
Na China Deng Xiaoping cuidou de enterrar as veleidades maoístas quanto a uma sociedade sem classes e libertou parte substancial dos mercados internos à iniciativa privada. Os sucessos económicos e financeiros subsequentes talvez dêem razão a Lenine quando definiu o socialismo como o resultado da soma entre o capitalismo e a eletricidade. Mesmo com alguns incidentes de permeio na praça Tiananmen,
Em síntese; 1979 foi o ano em que, por todo o mundo, mais gente de se manifestou a exigir melhor vida e menores desigualdades. Mais de quarenta anos depois convenhamos que os resultados revelaram-se pífios.

sábado, março 07, 2020

Diário das Imagens em Movimento: «Häxan - Feitiçarias através dos tempos» de Benjamin Christensen (1922)


Em 1922 o cinema escandinavo ganhou dimensão internacional, demonstrando a criatividade e a ambição de uma indústria, que assumiria doravante razoável dimensão. E nada mais natural que, sendo a tradição local tão enriquecida com os trölls e com o satanismo, Haxän adotasse por temas a magia e o satanismo. O resultado é uma sucessão de estórias com assinalável carga onírica em que deparamos com uma esposa frustrada a compensar-se nos braços do apelativo Diabo, uma velha suspeita de feitiçaria a ser torturada pela Inquisição ou um fenómeno de histeria coletiva num convento. Para acrescentar verosimilhança à narrativa Benjamin Christensen optou por filmar quase exclusivamente à noite. Mas essa verosimilhança tem um contraponto: o seu objetivo é o de denunciar o sadismo dos exorcistas e o papel nefasto assumido pelas igrejas. Há, no final, uma intenção de explicar cientificamente os fenómenos paranormais, atribuindo aos comportamentos das suas vítimas razões exclusivamente do foro mental, que só os preconceitos medievais associavam a efeitos malignos.
Christensen antecipou-se a outro grande realizador escandinavo - Carl Theodor Dreyer - que, em 1923, com Blade of Satan e, em 1943, com Dies Irae também andou por tais paragens. Ele próprio colocou-se perante a câmara protagonizando os papéis contraditórios de Diabo e do seu antídoto: o médico.
Se nos detivermos a olhar para o filme com atenção, temos de nele reconhecer o sentido plástico, que Christensen considerou herdados do seu gosto pelas pinturas de Hieronymus  Bosch, Brueghel ou Goya e que tanto influenciará Ingmar Bergman quando rodar O Sétimo Selo nesse ano de tão boas colheitas quanto o foi o de 1956.
Extremamente caro - na época excedeu em muito o orçamento inicial previsto pela Svens Filindustri - o filme foi aclamado em diversos países, mas também censurado noutros tantos. Mormente nos Estados Unidos para onde o realizador se mudou durante uns anos, rodando filmes para a MGM e para a Warner, nomeadamente O Circo do Diabo e As  Sete Pegadas de Satã. Entre os atores e atrizes que dirigiu nessa época avultam Lon Chaney e Norma Shearer.
O fracasso da experiência fê-lo voltar à Dinamarca, onde andou a dirigir peças de teatro até à ocupação nazi. Algumas tentativas cinematográficas desse período não lhe reimpulsionaram a carreira, levando-o a cingir-se à direção de uma sala de cinema em Copenhaga até ao final dos seus dias em 1959, quando a morte o encontrou, estava então com 79 anos.
Apesar de ficar conhecido apenas por este filme de 1922, Christensen influenciou duradouramente o cinema que se seguiria propondo formas de enquadrar e olhar para temas, que viriam a ganhar relevância num género que conheceria o seu fulgor com o italiano Mario Bava ou com a produção inglesa da Hammer Film Productions.

sexta-feira, março 06, 2020

Auditórios: «Rainforest», coreografia de Merce Cunningham

Nas margens: Tim Hetherington, Alexandre Dumas e o seu «noir»


1. O que leva um jovem a frequentar os cenários de guerra mais horrorosos do planeta, deparando com a mais extrema crueldade? Na Libéria, na Serra Leoa, no Afeganistão ou na Líbia, Tim Hetherington revelou que as guerras são feitas por jovens manipulados por quem na sombra os arma e lhes dá a ilusória sensação de um poder fútil, quase sempre fatal para si próprios. E que, à volta, sofrem os que nada podem contra a inevitabilidade de se verem roubados, agredidos, violentados, assassinados e desesperam de impotência por não o poderem evitar.

Aos pais, pertencentes à classe média britânica, Tim dissera um dia que não imaginavam quão ricos eram. Porque podiam dispor das suas circunstâncias de acordo com a própria vontade. Um luxo que não testemunhava naqueles a quem captava com a sua câmara. Até ao dia  20 de abril de 2011, quando os estilhaços de um morteiro o matou em Misrata. Completara 40 anos algumas semanas antes...
2. Os heróis dos folhetins de Alexandre Dumas também incorriam em grandes perigos, mas por ser ficcionais eram menos problemáticos do que os dos seus colaboradores, que o ajudavam a manter um fluxo torrencial de palavras nos jornais parisienses do seu tempo. A tal ponto que tendo havido quem se queixasse de não conseguir acompanhar tudo quanto assinava, o próprio Dumas reconhecesse passar-se o mesmo consigo próprio. O problema aconteceu depois da crise de 1848 quando deu consigo falido, incapaz de pagar as contas, incluindo os honorários de quem lhe escrevia boa parte dos textos. Razão para que um deles, Auguste Maquet o pusesse em tribunal reivindicando o direito de assinar os livros, que tinha redigido, incluindo o bem sucedido «Os Três Mosqueteiros». Terá sido essa a primeira vez que a questão dos direitos autorais chegou à barra dos tribunais. Que não deram razão ao queixoso, mas, ainda assim,  lhe atribuíram um quarto das receitas desses títulos alegadamente da sua lavra.
Contam os estudiosos da obra de Dumas, que Maquet não teria a razão do seu lado, porque concebia a história e desenvolvia-a mas era o patrão quem lhe dava a versão definitiva acrescentando-lhe o que o talento lhe ditava... e era muito! Na prática há quem compare o contributo de Maquet a um bloco de mármore bem talhado, sendo o de Dumas o da bela escultura nele desenvolvida e concluída.