terça-feira, março 10, 2020

Nas margens: As personalidades dos artistas e as suas obras


1. Numa semana em que participei na discussão de uma tertúlia de cinéfilos sobre a questão de poder ou não dissociar-se o artista da sua obra, apareceram-me à frente dos olhos alguns exemplos da arquitetura projetada por Antoni Gaudi para alguns edifícios no noroeste espanhol, muito distantes da sua Catalunha natal: El Capricho em Comillas, o Palácio Episcopal em Astorga e a Casa Botines em Léon.
A sua personalidade não me merece grande admiração, não tanto por privilegiar a misantropia, mas pela religiosidade que assumia estimular-lhe a criatividade. Para um ateu da minha estirpe um beato incomoda sempre alguma coisa. Mas como resistir à beleza da Sagrada Família, do Parque Güell ou à Pedrera? Eu que afianço quase nunca dissociar a obra de quem a assinou, sou obrigado a dar a mão à palmatória, enfileirando Gaudi com outros geniais criadores, com Bach em particular destaque, que assinaram obras notáveis, impulsionados pela fé.
As três obras, que Gaudi assinou nos intervalos dos seus afazeres em Barcelona, têm algumas das suas principais características, mormente a fantasia e os motivos mouriscos. E, embora ele as tenha pensado no contexto das paisagens em que seriam implantadas, todas elas acabam por sobressair como extravagâncias, que ainda mais as valorizam.
2. Na referida discussão sobre o artista e a sua obra veio ao de cima a personalidade de John Ford, que quase sempre se eximiu de pronunciar-se sobre questões políticas, mas demonstrou para onde orientava o seu pensamento em filmes de evidente simpatia pelos mais desfavorecidos face á força bruta dos que tinham por si as armas. Nos westerns, sobretudo nos últimos, os índios eram chacinados pelo exército colonizador, mais numeroso e melhor armado, mas também no inesquecível Vinhas da Ira em que deixava a mensagem óbvia de haver sempre um Tom Joad pronto para erguer-se do anonimato para defender os que precisavam do seu apoio. E há a denúncia da história americana como uma ilusão, feita de lendas muito diferentes das realidades, que ficaram clandestinas ou o momento determinante em que, numa reunião da Guilda dos Realizadores de Hollywood, desarmou a estratégia macarthista de Cecil B. De Mille contra os suspeitos de simpatias comunistas. Ele, realizador de filmes de cowboys levantou a voz para impedir que a histeria fosse levada ainda mais longe...

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