Num dos seus programas de Filosofia, rodados em 2018, Raphäel Enthoven convidou Céline Spector para com ele debater o tema de existirem ou não bons tiranos, dado continuarem na ordem do dia as discussões em torno de vários líderes, europeus ou não, empenhados em esvaziarem as instituições democráticas dos seus países para facilmente exercerem formas mais ou menos musculadas de autocracia. Putin na Rússia, Orban na Hungria, Erdogan na Turquia, Duterte nas Filipinas ou Kaczynski na Polónia eram, então, os casos mais óbvios, mas Trump nos EUA ou, mais recentemente, Bolsonaro no Brasil, seguiam estratégias coincidentes quanto ao aumento do seu poder pessoal em detrimento dos contrapoderes até então existentes.
Uma das questões inicialmente abordadas é assaz pertinente: as competências necessárias para a conquista do poder - em muitos casos a mentira e a intriga - deixam de valer para constituírem características necessárias à boa governação, aquela que levaria os governados a pretenderem conservá-la como um benefício efetivo para as suas vidas. Daí o paradoxo de, muitas vezes, parecermos condenados a ser governados por quem teve a habilidade de conquistar o poder, mas não a possui para o saber conservar. Resultado: governações incompetentes, que se traduzem numa crescente desaprovação coletiva. Até porque o poder tende a corromper e quem a ele acede ambiciona conservá-lo, mesmo que exercendo-o sem qualquer visão estratégica, que ajude a definir-lhe rumos com algum sentido.
Como escrevia Porfírio Silva no seu blogue há um par de dias, a resposta para as dificuldades suscitadas pela pandemia, ou qualquer outra crise, é incrementar a Democracia em vez de limitar-lhe os instrumentos e modelos de expressão. E Enthoven lembra um texto da Antiguidade grega, que contava como, no tempo dos trogloditas, estes partilharam os direitos e deveres da vida comunitária sem terem qualquer governo a orientá-los. Sentindo-lhe a falta foram ao mais velho de entre eles e ofereceram-lhe a incumbência de os liderar.
De lágrimas nos olhos o ancião aceitou o que dele exigiam, comentando-lhes:
- Eu que em breve morro e me reencontrarei com os nossos antepassados, como lhes vou explicar que os homens escolheram a servidão à liberdade?
Orientando a conversa para os déspotas atuais, um dos participantes do programa reconheceria que, no caso de Poutine, talvez os russos tenham ganho algo com a eficácia da implementação de grandes projetos, aprovados sem grandes constrangimentos, mas pouco terão recolhido da sensação de trocarem a sua segurança pela perdida liberdade. Razão para questionar se a Democracia representativa está, efetivamente em crise, como alguns postulam, ou se a resposta para muitos dos impasses atuais não passa por lhe dar maior alcance.
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