domingo, junho 07, 2020

(EdH) A oportuna execução da inventora do striptease


Em 15 de outubro de 1917 Margaretha Zella era executada em Vincennes, acusada de espionagem a favor dos alemães, contra quem o exército francês parecia em vias de averbar iminente derrota. A trágica história de Mata-Hari alia os erros de cálculo de uma mulher inteligente, mas incapaz de compreender todos os meandros em que se movimentara nos últimos três anos, bem como a vontade dos políticos franceses em encontrarem um oportuno bode expiatório, que ajudasse a explicar os fracassos das suas estratégias militares.
E, no entanto, para além de ter inventado o striptease, acaso não tivesse sido fuzilada, nada justificaria o renome de uma aventureira, que andara a sobreviver em circunstâncias adversas, durante toda a sua existência. A tradicional relação de Eros com Thanatos encontrou nela o motivo para criar mais um duradouro mito no imaginário coletivo.
Nascida numa pequena cidade frísia no interior dos Países Baixos - Leeurwarden -, Margaretha parecia fadada para uma vida privilegiada, porque o pai, comerciante, enriquecera na Bolsa e mimara-a como se de princesa se tratasse. Talvez tenha sido ele a legar-lhe uma certa megalomania, porque dizia-se aristocrata e pretendia, enquanto tal, ser tratado.
O choque de realidade chegou a Margaretha quando tinha sete anos: o pai faliu e a mãe morreu. Financiada por outros parentes, estudou em Leiden para vir a ser professora, mas os planos frustraram-se-lhe quando se descobriu a ligação amorosa com o diretor da escola e viu-se dela expulsa. A solução passou por aceitar o pedido de casamento de um militar vinte anos mais velho, com quem casou em 1895, acompanhando-o logo de seguida para uma comissão em Batavia nas Índias Orientais. Naquela que é hoje a cidade de Jacarta, sentiu-se profundamente infeliz: o marido, mulherengo, pegou-lhe a sífilis, possível razão porque o filho de ambos morreu com poucos meses de vida, porventura vitimado pelos efeitos do mercúrio então prescrito para o tratamento da doença.
Divorciando-se de Rudolph, Margaretha foi fixar-se em Paris onde, sem outras qualificações, recorreu à beleza para assumir o ofício de cortesã. Mas não tardou a ganhar inesperado sucesso ao decidir dançar - algo que até então nunca fizera - replicando gestos vistos nas danças indonésias, a  que acrescentou as sugestões eróticas de se despir até à nudez. Numa Europa então dominada pelo sortilégio orientalista, Mata-Hari - assim decidiu passar a chamar-se! - encontrou a receita certa para o sucesso. De repente viu-se aceite pela alta sociedade francesa, pelo menos quanto ao seu setor masculino e isso encantou-a. Era tanta a necessidade em ser reconhecida, que usou e abusou da nova situação, tomando por clientes muitos dos que pertenciam à elite política, económica e militar francesa, a que se somaram outros de origem alemã ou espanhola. De todos, Margaretha recebeu amplas demonstrações de competitividade quanto a tomarem por suas as contas que ela acumulava sem pensar no amanhã.
A guerra de 1914 virá na pior altura: à beira dos 40 anos o sucesso estava a declinar e os amantes iam rareando, tornando-se mais exigentes. Ademais, estava em Berlim no momento da mútua declaração de guerra entre a França e a Alemanha, o que lhe fez sentir a precariedade de não ser gaulesa, nem germânica. Sem dinheiro com que pagar as contas do hotel vê todos os bens arrestados, mudando-se para Haia sem quaisquer recursos. Durante um ano sobreviveu aí, trabalhando como manequim não imaginando que os Serviços Secretos ingleses já a tinham posto debaixo de olho sob suspeitas de trabalhar para o inimigo, assim se explicando a presença em Berlim no início das hostilidades.
Entediada com o provincianismo holandês e a pobreza em que se via, decidiu voltar a Paris, mas já nela não encontrou vestígios do ambiente da belle époque em que pudera singrar tão facilmente. As dificuldades multiplicam-se e decide viajar por Inglaterra, Espanha e Portugal para cumprir o que julgara ser um compromisso firme com os Serviços Secretos franceses a quem propusera colaboração.
Ao regressar a França a armadilha apertou-se e levou-a à prisão. Durante seis meses viu-se sujeita a sucessivos interrogatórios até confessar o que os algozes pretendiam ouvir, cavando assim a sepultura. E, no entanto, à distância de mais de cem anos, é consensual a evidência de nunca ter detido segredos militares de significativa valia por muito descontraídos que os amantes se revelassem na alcova.
Margaretha foi um instrumento político oportuno para quem, com a sua morte, se eximiu das verdadeiras responsabilidades quanto a uma guerra que, prevista para durar algumas semanas, se prolongou por quatro longos anos nas lamacentas trincheiras das frentes de batalha e saldando-se por um número de mortos  como nunca até então se constatara.

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