quarta-feira, junho 10, 2020

(DL) Macau Noir


Tenho na cave centenas, porventura milhares, de livros, comprados no último meio século e cuja leitura foi sendo adiada por outras prioridades, deixando-os num limbo donde ando há algum tempo a retirá-los. Nesta altura da vida, com a prole além-fronteiras, o pior que lhes posso fazer é deixar-lhes a incumbência de se livrarem do espólio, quando as circunstâncias assim o ditarem. Razão para andar a descobrir o que de interessante ali possa subsistir e foi pena atardar-me a fazê-lo. Mas também a dar com coisas vetustas, de autores menores, ou que se me tornaram francamente antipáticos, mas aos quais dou uma derradeira oportunidade para me surpreenderem. Depois, de consumadas as leituras, e acaso os volumes estejam em bom estado - é essa de facto a condição de quase todos! - prossegue a correspondente oferta à biblioteca municipal que, nesta altura, já contará com um bom número deles nas suas prateleiras.
Como aperitivo a coisas para as quais será asizado preparar o estômago - o invejoso-mor nacional ou o nazi francês da viagem ao fim da noite! - li de uma assentada um conto de Clara Ferreira Alves passado em Macau.
A criatura irrita-me, vendo-a como paradigma da emproada pespeneta. Preconceito que ajudou a não ter apreciado grandemente «Macau Noir». Há competência literária mediante a estratégia das frases curtas, de risco mitigado. Sente-se o estofo da jornalista, que visita as estranjas e delas colhe os pormenores que colorem as reportagens e uma história de amor entre um britânico e uma mestiça luso-chinesa, desaconselhada por um advogado sensato.
O inglês está decidido a não seguir-lhe o conselho: andara tantos anos a ganhar dinheiro na City e a gastá-lo no ano sabático entretanto decorrido como forma de encontrar algum sentido na vida para agora abdicar da emoção suscitada por aquela croupier, que sabe presa aos enleios complicados das tríades e outras máfias. Será persuadido pelo exemplo relatado pelo interlocutor sobre uma situação idêntica concluída com três mortos num quarto de Vladisvostoque? O final em aberto não nos dá resposta, mas o conto é mais uma daquelas chicletes literárias que, por instantes, se mastiga de logo se descarta...

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