quarta-feira, junho 24, 2020

(DIM) «À procura de Elly» de Asghar Farhadi (2009)


Quarta longa-metragem de Asghar Farhadi, À Procura de Elly não teve estreia nos cinemas nacionais apesar de galardoado com o Urso de Prata para Melhor Realizador no Festival de Berlim de 2009.
Só dois anos depois com Uma Separação é que os cinéfilos lusos começaram a acrescentar o nome de Farhadi aos de Kiarostami ou Panahi como realizador iraniano a ter em atenção. E, no entanto, que exultante - embora tensa! - é esta história sobre um grupo de amigos saídos de Teerão para gozarem o fim-de-semana numa das praias do Mar Cáspio.
Embora todos quantos participam na surtida pareçam alegres e descontraídos, a cena inicial logo dá pistas para o que se seguirá: percorrendo um longo e escuro túnel os quatro carros chegam à plena claridade exterior numa metáfora evidente com a situação política em que vivem. Não podemos esquecer que 2009 foi ano de sangrenta repressão política na sequência da contestação popular contra a reeleição do presidente Ahmadinejad. Embora revelando-se mais prudente e subtil que Jafar Panahi, Farhadi não esconde o posicionamento em relação ao regime dos aiatolas.
Transita-se da escuridão para a luz, porque os constrangimentos na periferia serão menores do que os padecidos em Teerão. Mas para a intriga do filme também se passa de uma perspetiva parcial para outra, mais abrangente.  Culmina-se no conhecimento global dos factos depois de terem sido olhados com ignorância, engano ou sigilo.
Não irá ser fácil a descoberta da verdade quando a recatada Elly desaparece e eles ficam sem saber se afogou no mar para salvar uma das crianças ou fugiu para não ficar comprometida perante os compromissos deixados na capital.
A misteriosa ausência põe em causa a harmonia inicial com o papel da mulher a explicitar-se de forma inesperada, porque contrária ao que julgaríamos ser o seu na sociedade iraniana.
A característica deteta-se sobretudo em Sepideh, mas todas as mulheres são muito ativas enquanto participantes na solução dos sucessivos problemas com que se deparam. Os homens não lhes contestam a autoridade e até lhes seguem as diretrizes, embora o filme seja igualmente explicito quanto a tal suceder enquanto se remeterem aos papéis sociais para elas definidos.
Elly fica particularmente em causa, quando Sepideh informa o grupo dela ter um noivo há dois anos e meio, mesmo que, de há seis meses para cá, queira com ele romper sem sucesso. Ora, no código de valores vigente na sociedade iraniana ela nunca deveria aceitar o convite para ser apresentada a um potencial interessado antes de ficar consensualizada a definitiva libertação do compromisso anterior.
A partir do momento em que desaparece cresce a angústia, o medo, a instabilidade nos quatro homens e nas três mulheres, nem sequer dela se poupando as crianças. Revelam-se os inconfessados segredos, desenleiam-se os enganos e questiona-se quem era verdadeiramente Elly, já que nem sequer Sepideh lhe conhece o apelido. Apenas sabe ser a professora da filha e tê-la imaginado casada com o amigo radicado na Alemanha e a passar breves férias no país natal.
Antes de se fazer ausente Elly deixa-nos uma das mais belas sequências do filme: os grandes planos do  rosto sorridente a viver a efémera liberdade de brincar com um papagaio, que conseguira pôr a voar, e captados pela câmara ao ombro.
O final, relativamente aberto, lega-nos algumas questões, que Farhadi deixa à nossa consideração: será Sepideh culpada pela tragédia ou ilibam-na as boas intenções? Voltará o grupo a recuperar a homogénea empatia inicial ou ficará definitivamente posto em causa?
A cena final pode funcionar como resposta implícita: Sepideh sentada à mesa dentro de casa de costas para quanto se passa lá fora, onde vemos os amigos a fazerem força para, em vão, desatolarem o carro preso na areia à beira-mar. No rosto lemos o desamparo pela irreversibilidade dos acontecimentos suscitados pelas suas mentiras.
Ao iniciar-se o desfile do genérico final ainda estamos abalados com tão hábil mistura entre a ligeireza inicial do convívio descontraído de um grupo de amigos e o mistério decorrente do desaparecimento de uma das mulheres. E como a inquietação potencia-se com a revelação progressiva, quase a conta-gotas, do que vai direcionando a história para rumos antes insuspeitáveis...

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