sexta-feira, março 13, 2020

Nas Margens: comportamentos singulares perante a demonstração da força bruta


1. Astor Piazzola contava que, nos inícios dos anos 60, chamara um táxi e, ao reconhecê-lo, o motorista pusera-se a invetivá-lo, acusando-o de comunista e outros ostensivos epítetos ofensivos até voltar a arrancar com o carro e deixá-lo ali, atónito, no passeio, ainda a mal acreditar na situação por que acabara de passar. E, no entanto, essa era a época em que rompera com o tango tradicional e propusera-lhe a sua leitura inovadora.
Esse episódio aparece nas cenas iniciais de  Piazzola, os anos de dragão, documentário de Daniel Rosenfeld em que sobressai a constatação da frequente dissonância entre a genialidade de um artista e o seu feitio. Porque, de facto, Astor foi, amiúde, um pai ditatorial e um marido pouco exemplar, pondo sempre os egoísmos à frente do que entendia serem os seus interesses colaterais. Daí que não surpreenda a atitude da filha que nunca lhe perdoou o facto de, na fase mais brutal da ditadura dos generais argentinos, ter-se apressado a participar numa cerimónia pública de subserviente «homenagem» a Videla.
2. As múltiplas imagens descobertas quotidianamente nunca esgotam a capacidade de nos surpreenderem: numa reportagem francesa sobre o surf na Nazaré, na Costa da Caparica ou na Ericeira, ficámos boquiabertos com a reivindicação dos entrevistados sobre a sua participação ativa na contestação à ditadura salazarista-marcelista. Ao ouvi-los quase parecia que as revoltas estudantis, as clandestinas ações comunistas e das extremas-esquerdas ou os esforços de outros democratas nos exíguos limites da legalidade fossem de somenos importância, porque teriam sido os surfistas a liderar a oposição à ditadura, fazendo-os heróis das lutas pela Liberdade e Democracia. Nós, nados e criados na Caparica, nunca déramos de caras com tão destemidos “antifascistas”!
3. Quem lutou de facto pelos seus direitos foram os operários de Nantes na histórica manifestação de 19 de agosto de 1955, quando a polícia de choque não hesitou no recurso a abrir fogo sobre quem os liderava. Um quarto de século depois o cineasta Jacques Demy, que associaríamos mais facilmente aos filmes cantados com as irmãs Deneuve-Dorléac ou à ilustração das histórias de Perrault, não hesitou em recordar o episódio no seu Une Chambre en Ville, onde evocou igualmente os cenários da sua infância entre a Passage Pommeray e o teatro Graslin onde, desde os quatro anos, cultivara o gosto musical pelas operetas que tanto condicionariam o rumo futuro da sua obra.

Sem comentários: