domingo, março 15, 2020

Diário das Imagens em Movimento: «Ruas da Cidade» de Rouben Mamoulian (1931)


Na História do Cinema o filme de gangsters começou a criar as suas características com Underworld de Josef von Sternberg em 1927 logo seguindo-se O Pequeno César de Mervyn LeRoy e O Inimigo Público de William A. Wellman, ambos de 1931, e, sobretudo, Scarface no ano seguinte.
Menos determinante, e até algo esquecido, este Ruas da Cidade é a única incursão de Rouben Mamoulian no género, sendo percetível o quanto, nesta segunda experiência no sonoro ele ainda tinha dificuldades em libertar-se da tentação de compor algumas cenas como se de teatro falado se tratasse.
Na origem do projeto está uma obra de Dashiell Hammett, que estava em plena ascensão depois da publicação de O Falcão Maltês no ano anterior. O romance policial ganhava uma dimensão ideológica, que faria do escritor um dos principais alvos do macartismo nos anos 50. Mas os argumentistas do estúdio desvirtuaram alguns dos aspetos mais interessantes do texto original.
A história passa-se durante a Lei Seca e Gary Cooper faz o papel de um jovem imaturo, que troca a barraca de tiros na feira para se comprometer com o bando de malfeitores onde pontifica como lugar-tenente do chefe o pai da namorada. Para evidenciar a súbita transformação da personagem Mamoulian muda-lhe o guarda-roupa, mas sobretudo a expressão facial e a compostura. Da descontração pueril das cenas iniciais o Kid passa a ser um homem frio e calculista, que não hesita em demonstrar a sua habilidade no uso do gatilho. Sobretudo, porque o suposto patrão quer-lhe roubar a namorada, dando ordens para dele se livrarem.
Mamoulian pode explicitar aquilo que dele conhecemos na maioria dos seus filmes: a ambiguidade  como o mal se revela demasiado poroso, dado que o bando constitui-se como uma espécie de tabuleiro de xadrez onde os peões vão sendo facilmente descartados.
Vale a pena apreciarmos com atenção a cena inicial, quando, no decurso de uma negociação para a compra de cerveja, Mamoulian escolhe enquadramentos demonstrativos da presença dominadora dos malfeitores  com a elipse em que o tanque com o produto proibido se confunde com a água do rio onde aparece a boiar o chapéu do comprador, que desagradara ao chefe do gangue. Ou também se revela imperdível a cena desenfreada do automóvel a acompanhar um comboio e a ultrapassá-lo numa passagem de nível, seguindo para as perigosas estradas da montanha, onde ocorre o desenlace.
Ao contrário dos filmes inicialmente citados como fundadores do género, este Ruas da Cidade não envereda pelo discurso niilista nem pelo excessivo sadismo.  E, se o final pode parecer abrupto para quem vê o filme à distância de quase noventa anos, compreende-se que as exigências do público da época não desse margem a Mamoulian para ensaiar outra alternativa.

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