segunda-feira, março 30, 2020

(DIM) O atual estado da arte no cinema italiano


Se durante várias semanas acompanhámos as diversas vertentes por que passou o neorrealismo italiano faz todo o sentido olharmos para duas obras recentes e constatarmos quais as principais linhas de força do tipo de cinema produzido na bota transalpina. E forçoso é constatar a omnipresença do fenómeno do crime organizado, que o escritor Roberto Saviano trouxe de forma ainda mais pertinente para a ordem do dia com os seus romances dedicados à que grassa em Nápoles.
Estreado em 2017, O Fantasma da Sicília é coassinado por Fabio Grassadonia e Antonio Piazza e encontra uma forma inspirada para abordar o tema, ao dar-lhe uma aparência próxima do filme de mistério.
Luna e Giuseppe são dois adolescentes que andam a dar os primeiros passos na descoberta do amor, quando ele desaparece e ninguém se parece interessar pelo caso. A floresta próxima onde costumavam passear parece ser o lugar que Luna julga mais provável para o reencontrar e por isso interna-se nela vestida de vermelho a dar-nos a sugestão de um capuchinho prestes a enfrentar qualquer temível lobo. Essa coabitação entre o realismo e o estranho lembra Twin Peaks de David Lynch até porque os realizadores fazem-nos partilhar as alucinações de ambos os personagens, um que procura, o outro que nada mais pode fazer do que ser procurado. Mas o que se vê à superfície esconde um submundo onde Giuseppe surge como fator de chantagem sobre o pai, que terá começado a delatar à polícia tudo quanto sabe da organização a que pertenceu. E o desenlace acaba por ser o mesmo do efetivamente verificado  na década de 90 quando ocorreu o crime em que o filme se inspira.
Loro, que em Portugal teve por título Sílvio e os outros, foi o filme realizado por Paolo Sorrentino em 2018. Na origem estava dividido em duas partes, mas quando foi distribuído internacionalmente teve uma remontagem que lhe deu esta forma que pudemos conhecer. E esse desequilíbrio nota-se, porque a primeira parte acompanha o percurso de um arrivista, Sergio Morra, que quer chegar a «ele» e tudo faz para o conseguir.
O tal «ele» é Silvio Berlusconi e só surge nessa segunda parte tomando quase toda a primazia dos acontecimentos. E são estes que mais relevância assumem por terem a ver com os complexos de inferioridade do talentoso vendedor de banha da cobra, que os procurou compensar com um narcisismo extremo de que as célebres festas bunga-bunga faziam parte. É, pois, um filme sobre o fim da era Berlusconi, mas com recurso a meios vistosos, diria mesmo ostentatório, que justificam as desconfianças de uma certa intelectualidade em relação ao conjunto da obra do realizador.
É inequívoca a antipatia de Sorrentino por Berlusconi, servindo-se de Veronica Lario (a ex que dele se divorcia) como alter ego para pôr preto no branco tudo quanto a se lhe pode apontar. Ou seja que os seus mandatos como primeiro-ministro nada trouxeram de positivo para a grande maioria dos italianos. Bem pelo contrário! E por isso é inteligente o recurso final às cenas sobre o terramoto de Aquila, suscitando um evidente paralelismo entre a desgovernação berlusconiana e a forma como deixou a Itália, quando regressou aos bastidores da política.
Ele personifica a conquista dos lugares de poder por homens sem qualidades que podiam ter a aparência falsamente séria de Cavaco Silva nessa altura, mas viriam a assumir depois a forma de perigosos palhaços como os que hoje nos inquietam, sejam eles Trump, Bolsonaro, Salvini ou outros da mesma estirpe (viral, acrescente-se!)
O que fica em causa é se Sorrentino acaba por revelar-se ele mesmo um libidinoso apreciador das nádegas das manequins do filme, quando apenas pretenderia ilustrar as obsessões do seu ódio de estimação.  E esta é uma questão interessante sobre o próprio cinema, que em tempos tanto entusiasmou os teóricos da semiologia: até que ponto o significante se confunde com o significado? Até que ponto a representação acaba por denunciar algo do que a concebe?
Acresce dizer que o filme vale também pelas sempre irrepreensíveis interpretações de Toni Servillo, um ator que tem demonstrado uma impressionante versatilidade nos papéis que lhe vêm cabendo.
Muito embora dois filmes não bastem para amostragem do que hoje é o cinema italiano, quem acompanha as festas anuais no São Jorge, com as suas mais recentes produções, confirmará que é o presente o que motiva os seus cineastas, embora o mais interessante de entre eles, Nanni Moretti, pareça recolhido para reestruturar as contradições sobre o momentâneo ocaso da corrente ideológica em que se reconhece. Daí que o seu projeto mais recente tenha sido o documentário sobre o Chile de Allende.
Grassadonia, Piazza ou Sorrentino não apresentam alternativas suscetíveis de se imporem à realidade, de que se fazem testemunhas. Mas qualquer ator político interessado na transformação das sociedades no sentido que Marx pressupunha ser o sentido da História sabe que o primeiro passo para uma estratégia de futuro passa por identificar a situação tal qual se apresenta, dissociando-lhe os interesses contraditórios entre as diversas classes e, depois, agir em conformidade potenciando as táticas capazes de, a cada momento, a tornar exequível...
Nesse sentido pode-se considerar que os dois filmes cumprem o seu papel.


(Texto a inserir nos materiais de apoio às sessões - por agora virtuais - da tertúlia organizada pela Usalma, universidade senior em Almada)

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