sexta-feira, março 27, 2020

(DIM) Uma liberdade adiada pelo covid 19


Quando vejo um filme parto do princípio, que me vai ser contada uma história. E a exemplo de quase todos os espectadores aprecio que ma revelem despertando-me o interesse, mesmo não se obrigando a servir de espelho para as eventuais questões identitárias ou outras de foro metafísico. Mas com Albert Serra sabemos à partida que isso não sucederá, Basta atinarmos nos filmes que dele vimos anteriormente, sobretudo Honra da Cavalaria ou A Morte de Luís XIV: em vez de histórias com princípio, meio e fim, confrontámo-nos com ambiências estranhas habitadas por personagens eivados de desejos, invariavelmente frustrados. Porque essa tem sido a regra nos que têm habitados os seus filmes, sejam eles os Reis Magos, Dom Quixote e Sancho Pança, Casanova ou o Conde Drácula.
Assumindo-se como um apreciador dos livros de Rousseau, Voltaire ou Sade, Albert Serra diz não ter qualquer respeito pelo cinema embora nele se exprima como autor sui generis. Por isso em Liberté, estreado em vésperas da ordem governamental para encerramento dos cinemas e por isso  ainda vedado à nossa fruição, ele juntou um conjunto de técnicos e de atores num bosque de eucaliptos da Amareleja e durante três semanas a fio deixou-os entregues a si mesmos depois do sol pôr, sem guião a nortear-lhes os gestos ou as falas e com três câmaras a filmá-los em simultâneo sem nunca saberem se estavam ou não a verem-se registados no filme. À partida havia apenas um mote inicial: eram libertinos que tinham escapado da corte de Luís XVI, por sofrerem crescente intolerância para com os seus comportamentos impudicos. E agora dispostos a raptarem umas noviças para as utilizarem nos seus jogos perversos. A partir daí vale tudo para regalo dos voyeurs-espectadores depressa desapontados por sempre se colocarem obstáculos aos seus pontos de observação.
Albert Serra pretende impor a sua perspetiva sobre a libertinagem enquanto atitude de total arbitrariedade, nela anulando-se o desejo de cada um dos que nela participam. Porque “só na aceitação dessa arbitrariedade (...) existe a liberdade”. Mesmo que se deva aceitar sem rebuços quer o injusto, quer o abjeto.
Não será filme destinado a quem busque as salas de cinema para se divertir. Pelo contrário aqui fica-se incomodado, quiçá com vontade de sair a meio por se ter alcançado o limite da suportabilidade. Mas esse é o desafio imposto pelo filme de Albert Serra: se nos sentimos perturbados é por escondermos na índole algo que não gostaríamos de reconhecer como possível no que verdadeiramente somos...

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