sábado, novembro 10, 2018

(DL) «Não se pode morar nos olhos de um gato» de Ana Margarida de Carvalho


Quando se trata de referenciar os mais interessantes escritores portugueses da atualidade o nome de Ana Margarida de Carvalho é incontornável. Não são apenas os muitos prémios literários, que lhe fundamentam a importância,  porque maior justificação encontramos nas suas narrativas, construídas com irrepreensível consistência e recorrendo a um frasear tão elaborado, quanto limpo de quanto nele pudesse revelar-se redundante.
Se «Que importa a fúria do mar» tinha-nos devolvido aos tempos difíceis da revolta da Marinha Grande e os tormentos dos que sofreram no Tarrafal o efeito direto da rebeldia contra a ditadura, em »Não se pode morar nos olhos de um gato» ainda mais recuamos no passado para revisitarmos a crueldade da escravatura, quando, apesar de proscrita, ainda era praticada clandestinamente por quem nela procurava garantir os lucros da exploração do trabalho alheio na sua forma mais odiosa.
No primeiro capítulo encontramos o navio negreiro numa condição similar ao do que Joseph Conrad descrevia no seu «The Shadow Line»: a inexistência dos ventos impedia as velas de o empurrar para a direção pretendida, atiçando a impaciência dos tripulantes, sobretudo quando a fome aperta e o comandante inglês só pensa na preservação dos três puros-sangues com cuja venda antevê garantida a sua reforma.
A água a subir no porão, onde os escravos acorrentados se acumulam, denuncia a má calafetagem da construção e o perigo crescente, que se agudiza com a decisão homicida do comandante em punir um jovem marinheiro, que se confessara autor do sacrifício de um dos cavalos. O motim a bordo explica o incêndio, que causa a perda da embarcação, dela só restando a meia-dúzia de passageiros e tripulantes, que escapam numa frágil jangada.
Acontece, porém, que todo esse microuniverso de explorados e exploradores vê-se circunscrito a uma praia deserta à beira de intransponível falésia, com as marés a submergirem-na duas vezes ao dia, remetendo os sobreviventes à exígua proteção de uma reentrância escavada na parede rochosa.
Os dias passam, as classes diluem-se no esforço colaborativo para que todos se mantenham vivos, enquanto, um a um, vamos conhecendo os respetivos passados.
Nunzio, que sobressai pelo cabelo da cor do açúcar mascavado, ficara órfão à nascença, merecendo do pai o desprezo de ser o culpado pela morte da mãe. Esse capitão do mato, que fizera fortuna nas caçadas a escravos foragidos, mereceria  impiedosa paga, quando o filho chegara à idade adulta.
Marcolino, o padre, nascera numa família muito pobre e fora encaminhado para o seminário a expensas de uma senhora rica, que dele se condoera. No entanto a obrigatória castidade vê-se sujeita à prova, quando o contacto físico com as mulheres lhe atiça as hormonas.
A mulher do dono do navio negreiro, Teresa de Albuquerque, fora a filha mimada de um casal, que fizera fortuna a engordar escravos para que ganhassem valor comercial e garantissem apreciáveis mais valias aos que neles haviam investido. Muito desenrascada, tomara as rédeas da organização da pequena comunidade, mas nunca intuíra sobre quem fora o causador da gravidez da filha, Emina, prestes a conhecer o desenlace: o próprio marido, que nunca a levara a suspeitar da ligação incestuosa mantida com a rapariga.
José, o subserviente criado do capataz, esconde um segredo, que só quase o fim do livro revelará e tem a ver com a sua identidade.
Por seu lado o escravo Julien possui, igualmente, uma personalidade controversa, demonstrativa da velha premissa de, em circunstâncias a tal favoráveis, ser o homem o autêntico lobo que caça os semelhantes.
Quando concluímos a leitura do romance é fácil compreender que, a pretexto de uma história trágico-marítima em época influenciada pelos valores iluministas, o que está em causa é uma metáfora sobre este século XXI, quando classes sociais distintas estão acossadas pela mesma ameaça distópica e lhes falta visão sobre como dela escaparem.

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