quinta-feira, novembro 01, 2018

(DIM) Imperdível, esta noite na Gandaia: «Nostalgia de Luz» de Patricio Guzmán


Na sessão de ontem à noite em que a Associação Gandaia serviu de anfitriã à escritora Maria Alzira Cabral, para que se abordassem os seus três romances, entre os quais o editado este ano - «Um Deus de Pés Descalços» - o debate resvalou para as questões da memória e da definição de presente. Porque elas estavam subjacentes a qualquer dessas histórias, onde alguns personagens tentavam conciliar o desejo atávico pela felicidade com os condicionalismos deixados por experiências de vida, que as tenderiam a impossibilitar.

A memória, e tudo quanto com ela se interliga - a verdade, a perceção do tempo, a vida e a morte - volta a estar em questão no filme «Nostalgia da Luz», que será objeto de abordagem na sessão do Cineclube desta noite.
Patricio Guzmán, o seu realizador, quis rodá-lo para que o ainda incipiente trabalho de memória sobre os anos de chumbo no Chile se incremente, e a memória dos desaparecidos - ainda não devidamente homenageados! - seja realçada. Há um casal, que aparece no filme, que metaforiza a situação atual no Chile: Miguel, arquiteto da memória, simboliza todos os compatriotas, que se batem por resgatar essa evocação das vítimas da ditadura fascista, enquanto a mulher, Anita, tem no seu trágico Alzheimer a ilustração da vontade de tudo ser esquecido, ainda maioritária na sociedade chilena, onde os meios de comunicação e as escolas tudo fazem para passar uma esponja sobre os acontecimentos dos anos 70 e 80.  Assim se explica que, no emblemático palácio de la Moneda se vão sucedendo presidentes, ora da esquerda bem comportada, ora da direita, que se pretende mascarar de civilizada.
A nostalgia do filme tem a ver com a da infância do realizador que, no início, relata como se sentira fascinado pela astronomia. O sentimento não se restringe ao dessa época de pueril inocência, alargando-se à nobre aventura vivida durante toda a duração da presidência de Salvador Allende de quem fora entusiástico apoiante. E também à saudade relacionada com o forçado exílio, que o apartou da terra natal durante quase vinte anos.
A nostalgia decorre de saber sem regresso um passado em que se foi feliz e foi cerceado pelas botas cardadas dos militares.
Uma das entrevistas mais poderosas do filme, a efetuada a Valentina Rodriguez, retrata um outro tipo de infância, porque caracterizada por outras condições, que não tinham sido as de Guzmán: filha de pais desaparecidos, ela aprendera a superar uma dor, que confessa com uma serenidade relacionada com o ciclo vital da vida, morte e renascimento (o dos dois filhos), que fazem pressupor um novo reinício liberto dessa nostalgia de uma perda irremediável.
As estrelas que os astrónomos perscrutam equivalem a um jogo de espelho e inversão em que os céus acabam por relacionarem-se com a Terra e os seus habitantes, cujas origens podem ser clarificadas por esse trabalho científico. Uma das ideias-força do filme é a de o homem e as estrelas provirem da mesma matéria. Por isso é a poeira das estrelas que as familiares dos desaparecidos procuram laboriosamente no deserto. As pessoas entrevistadas no filme estão inseridas ao mesmo tempo na história chilena e na do Cosmos.
Maravilhosamente visual - o deserto de Atacama permite fotogramas de uma beleza quase sufocante! -«Nostalgia da Luz» é, igualmente, rica em sons: o do omnipresente vento, que varre o deserto e evoca a inexorabilidade do tempo que passa, mas também o som dos passos a pisarem os calhaus a acentuarem a solidão, o isolamento do esforço de quem os perfaz. E há o som ruidoso dos telescópios, contrastante com a calma do deserto, como se as tão publicitadas descobertas astronómicas suscitassem um eco mediático, incomparável com o silêncio em torno da busca dos familiares dos desaparecidos.
No fim do filme, o realizador opta por uma circularidade com inegável significado: trazendo de volta os berlindes da infância lembra que todos nós podemos guardar nos bolsos o próprio Universo.

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