segunda-feira, novembro 19, 2018

(DL) Escrever na primeira pessoa


Se o melhor conselho dado a um aprendiz de escritor é que escreva sobre  quanto melhor conheça, o relato de si mesmo acaba por constituir o tema mais óbvio. A História da Literatura está recheada de exemplos de obras-primas e de outras de menor qualidade, mas igualmente relevantes por razões mais ou menos específicas, que começaram pela intenção dos autores em contarem-se a si mesmos, seja no que iam fazendo, seja nas reflexões contraditórias da sua mente.
Se queremos procurar no passado um exemplo desse propósito podemos recuar ao século XVI, quando o normando Gilles de Gouberville iniciou o seu «livro de razão» para anotar as despesas, as receitas e alguns factos ocorridos na sua região.
«Os Ensaios» de Montaigne e as «Confissões» de Rousseau assumiriam outra ambição, que o Iluminismo do final do século XVIII consolidaria com incentivos à dominante burguesia para que se revelasse em diários íntimos. Anteriormente vocacionado para propósitos religiosos, esse tipo de expressão literária passa a acolher angústias e confissões de culpabilidade. Em particular as mulheres haviam-no tomado de assalto e, libertas de constrangimentos autocensórios, abordaram as dúvidas e aspirações emancipadoras, causando nervoso miudinho na corte de Versalhes. Madame de Stäel, por exemplo, inicia o relato aos 19 anos, quando resiste à vontade paterna de a casarem com quem era tido como o melhor partido para ela.
No século seguinte George Sand justifica que a considerem a inventora da autobiografia no feminino, ao contar o que significa ser mulher e escritora do seu tempo.
Na primeira metade do século XX, Paul Léautaud vai mais longe e, no seu «Diário particular», relata as proezas sexuais com Marie Dormoy, que lhe servia de secretária, cozinheira, mulher-a-dias ... e amante! Por essa altura Virginia Woolf servia-se do diário como antecâmara do que pretendia traduzir em romance. A autenticidade e a liberdade com que se escrevem esses textos são a garantia da sua intemporalidade.
Anne Frank torna-se num ícone, não tanto pela qualidade literária dos seus cadernos, mas por quanto revelam enquanto testemunho de uma época trágica e como a via uma rapariga adolescente, tão pródiga em sonhos, quanto nos justificados medos das ameaças, que lhe abreviariam a breve existência.
As autobiografias tornaram-se numa moda de compromisso com o relato da verdade retrospetiva, competindo como género literário ao lado do romance ou da poesia. Embora o estruturalismo proclamasse a morte do autor, os anos 80 trouxeram um reforço dos propósitos confessionais na primeira pessoa, assinados por Pierre Goldman, Camille Laurens, Hervé Guibert ou Catherine Millet entre outros.
A partir de 1995 a Internet viria a tornar-se espaço privilegiado de diários íntimos de quem nela confia as suas revelações. E quem quer satisfazer a curiosidade pelos vivenciares alheios encontra aí um filão inesgotável.

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