terça-feira, novembro 13, 2018

(DIM) «Crash» de David Cronenberg (1996)


À partida há um acidente rodoviário, que muda drasticamente a vida do narrador, James Ballard: de forma incontornável desenvolve uma obsessão pelas chapas amolgadas de carros acidentados.  Catalisa a nova carência ao fazer-se contratar por Vaugham, que organiza a reconstituição de acidentes célebres - nomeadamente aquele em que James Dean perdeu a vida! - para satisfazer a curiosidade mórbida dos seus muitos clientes.
Pouco a pouco Ballard vai deslizando para uma nova forma de sexualidade em que se mesclam a violência, o desejo e a tecnologia.
Tratando-se do primeiro livro da trilogia do betão de J.G. Ballard, o que interessou a Cronenberg, quando o adaptou ao cinema, foram as relações entre o homem e a tecnologia num mundo pervertido pelas máquinas, com tudo o que de político sugerem. Ora, desde 1969, que a obra do realizador foi caracterizada pela obsessão com o corpo em filmes, que se tornaram objeto de culto: «Scanners», «Videodrome», «Dead Zone», «A Mosca» ou «eXistenZ». Neles víamos a pele a esticar-se ou a abrir-se, as cicatrizes, as metamorfoses ou as lutas corpo-a-corpo. Neles também estava presente a tenologia mais avançada, seja em jogos, em ecrãs, em teletransporte ou na própria doença. Ou  o dinheiro e a sua revelação entre a sombra e a luz.
Cronenberg projetou no cinema a paixão pelo real e pelo fantástico, que se interligam até colidirem. «Crash», em que se organizam simulacros para suscitar o prazer e o experimentar, tinha todas as condições para o interessarem. O voyeurismo é um tema persistente na obra do realizador: a volúpia do orgasmo só se concretiza mediante a possibilidade de existir quem a ele assista e o sentido de comunidade recria-se a partir da reunião dos que partilham esse delírio lascivo.
É como se a pele e a carne perdessem existência para só se valorizar a vida, a existência de uma «alma». As emoções inexistem se tudo decorre com normalidade, porque só emergem perante a agressão, a transgressão, quiçá mesmo a violação. A relação com o mundo só parece tornar-se possível, quando se sofre o embate com os seus estímulos violentos.
Ballard sempre defendeu que  a ficção científica era a abordagem mais eficaz para o conhecimento humano. Nas suas distopias, que nos projetam para o lado pior da sociedade, existe uma reflexão psíquica e política. Cronenberg é mais subtil nessa demonstração, jogando com a ambivalência e a estética, frequentemente evocativa de Caravaggio. A lentidão com que a câmara percorre os corpos e a chapa amolgada, numa iluminação que os tende a misturar, favorece a sublimação, que significa haver algo de humano no seu próprio desaparecimento.

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