domingo, abril 16, 2017

(DL) A viagem a Itália de Goethe

É comum o desejo de liberdade em todos escravizados pelos horários de trabalho. Quando andava a bordo ansiava pelo reencontro com a família tão só regressasse a casa. Depois, já sedentarizado na capital, almejava pela reforma, período para ver tantos filmes quanto desejasse, ler todos os livros até então adiados, comparecer nos melhores concertos do CCB ou da Gulbenkian e não falhar exposição merecedora de atenção. Passeando muito, visitando tudo quanto ficara remetido à fórmula «havemos de lá ir…»
Doce ilusão, porque a disponibilidade não chega para tanto e sobram sempre coisas por fazer, tanto mais que os dias escoam-se com tal velocidade que, apenas começados, logo parecem esgotados.
Goethe terá sido um dos exemplos mais conhecidos de quem levou a peito a decisão de romper com todos os compromissos e dedicar quase dois anos de vida a fazer o que mais lhe aprazava: viajar por Itália.
Aconteceu-lhe quando estava a fazer 37 anos e acabara de acompanhar o duque de Weimar à habitual temporada nas termas de Carlsbad. Na madrugada do dia em que a corte regressaria à capital o enfadado ministro partiu sem explicações, tomando o rumo há muito gizado.
A primeira escala seria Veneza, cidade fascinante que admirou pelas cores admiradas a partir das alturas do Campanile e com um céu de tonalidades diversas, que sublinharia depois nos seus textos. Mas se a descoberta começou pelos muito frequentados labirintos entre a Praça de São Marcos e o Rialto, com paragem obrigatória no já então existente mercado do peixe, Goethe depressa concluiria o mesmo que os maiores apreciadores da cidade: o sortilégio está na permanente descoberta das perspetivas inesperadas de cada esquina ou nos pequenos largos, onde se vão descobrindo igrejas e capelas surpreendentes, tão-só se abandone o bulício das filas de turistas e se arrisquem os dédalos mais periféricos.
Quando tomou a decisão de partir para Roma, Goethe ainda não imaginava o quão difícil se revelaria a viagem de diligência para lá chegar. Passando por Verona, Pádua, pelas sulfurosas margens do Lago Garda, por Assis e Florença que, inexplicavelmente, não o atrai para mais do que justificada estadia. Sessenta e cinco morosos dias até se confrontar com a arquitetura monumental da cidade eterna, onde se sentiria verdadeiramente ressuscitar a partir de algo de inexplicavelmente cristalizado até então. O viajante sentiu-se aligeirado ao percorrer as sendas verdejantes entre as sucessivas cascatas do Tivoli e concluiu nada doravante vir a ser como até então lhe acontecera.
Foi também em Roma, que sentiu justificada a opção de se ter constituído viajante clandestino, porque o suicídio do seu Werther ainda continuava abominado pelo Vaticano, que integrara o romance no seu sinistro índex. Só os amigos da reduzida comunidade germânica na cidade sabem quem ele é, e um deles, Johann Tischbein, até o reproduz num dos mais celebrados quadros que nos dão dele uma aproximada semelhança. Há também quem refira a ligação amorosa com uma mulher casada sete anos mais velha, Charlotte, mas ficaria a dúvida sobre se se trataria de empatia mais do que platónica.
Nápoles constituiu-se como escala seguinte. Escalou três vezes as encostas do Vesúvio, então em grande atividade vulcânica, para sentir o deslumbramento do impacto das forças telúricas escondidas debaixo dos seus pés. O perigo em que incorre é sério, porque chega a sentir a temperatura abrasadora da lava e quase é atingido pelos materiais projetados a partir da caldeira.
Pompeia foi outra visita memorável para testemunhar os efeitos terríveis da Natureza indomável, mas igualmente a nostálgica beleza dos frescos das casas durante séculos soterradas.
Mas a cidade à beira do vulcão encantou-o, sobretudo, pela suposta dolce vita. Contrariando a soturnidade dos romanos, os napolitanos desvendam-se ao viajante como um povo alegre e descontraído, mediterrânico quanto baste para o pôr a atentar-lhe nos gestos, nos comportamentos.
Goethe ainda visitará a Sicília, mas com o regresso a impor-se-lhe no íntimo como obrigação: é que viveu tanto, que é tempo de contar tudo quanto conheceu. Não só no registo autobiográfico, mas também em romances e poemas, que consubstanciariam a essência do romantismo.
Chegado a Weimar , o soberano não mostrou despeito com a falta de consideração do ministro, que zarpara sem lhe dar qualquer explicação. Complacente, manteve-o como conselheiro incumbido de menor carga de compromissos oficiais, dando-lhe enfim a quietação necessária para que viesse a desenvolver o talento literário. E científico, porque, embora menos conhecida tal vertente da obra, ele assinou alguns tratados científicos com tudo o que as viagens lhe tinham dado a conhecer nas áreas da botânica, da anatomia e da cor. 

Sem comentários: