terça-feira, abril 11, 2017

(DIM) «O Sangue» de Pedro Costa

O próximo filme a exibir no Cineclube Gandaia ( dia 13, 21 horas, Cinema Impala, Costa da Caparica), começa com uma violenta bofetada. E se quem a leva, Vicente, fica quase impassível, como se as agressões do pai fossem rotina a que há muito se habituara, para quem está a olhar para o ecrã reside aí uma das primeiras reações muito impressivas de um filme apostado em desafiar o espectador para a beleza, mas também para a torpeza dos segredos silenciados.
A primeira-longa metragem de Pedro Costa mostra um Portugal do interior, onde o pai representa o despotismo. Nesse sentido, e embora não fique explicita essa leitura, não enjeito a possibilidade de o ver configurar a memória do salazarismo na sua odiosa brutalidade, na perversidade com que nele se reprimia a sexualidade, vivida clandestinamente nos seus modelos mais equívocos. E o tio, que o substitui, poderá ser visto como uma evolução na continuidade, em que se mudam os nomes às coisas, para que elas continuem a ser as mesmas.
Vicente tem 17 anos quando o pai desaparece, muito embora se saibam diferentes os motivos das anteriores ausências, Nino tem só 10 anos e, para com tudo à volta, uma inesgotável curiosidade. Eles vão-se separar e viver de forma distinta os dramas inerentes a essa separação.
Quase sempre passado à noite, o filme remete para grandes filmes da História do Cinema. É o caso de «A Noite do Caçador» de Charles Laughton em que dois miúdos desciam um rio sempre com o medo da ameaça assassina do padrasto.  Um inesquecível Robert Mitchum.
Não espanta que os personagens vivam nessa metade obscura de cada dia, quando dominam os sonhos e os pesadelos, os medos e as culpas,  os remorsos e as expiações. Teria esteticamente de ser um filme sem outras cores que não os brancos, os negros e os muitos matizes dos cinzentos, notavelmente captados pelo talento do diretor de fotografia Martin Schäfer. Como explicava João Bénard da Costa “só o preto e branco pode dar a ver as coisas escuras e claras que tem para mostrar”.
Não era só o antigo diretor da Cinemateca a considerar belíssimo este filme. Manuel S. Fonseca descrevê-lo-ia como de uma tristeza desmedida, à beira da agonia, enquanto Vasco Câmara sublinharia a demonstração da infância e da adolescência como fase de solidão e de exclusão.
O personagem que mais nos impressiona é esse Vicente, sucessivamente massacrado e incapaz de encontrar na cidade a possibilidade de um recomeço. Interpretado por Pedro Hestnes, permite-nos apreciar o talento de um ator precocemente desaparecido com cancro em 2011 e decerto um dos rostos mais influentes do cinema português do pós-25 de abril. Os trinta títulos da sua filmografia integram alguns dos mais representativos de um cinema sempre confrontado com grandes dificuldades orçamentais, mas capaz de construir a sua identidade e originalidade.
Depois da fantasia e da imaginação patenteadas pelo filme de Miguel Gomes, visto na semana passada, e antes de revisitarmos a autenticidade do mundo alentejano e lisboeta através, respetivamente, do cante e da guitarra de Paredes, o filme de Pedro Costa é uma paragem obrigatória para não esquecermos o quanto de sórdido se consegue iludir na arte de ser português.


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