quarta-feira, abril 26, 2017

(DL) Recordar Gabo: Um dia depois de sábado (3)

Todos os dias o padre António ia à estação ferroviária para a chegada do único comboio que ali parava, quase sempre sem que ninguém dele descesse ou nele subisse. Quão diferente era a Macondo atual em comparação com os tempos em que os militares ainda não tinham metralhado os trabalhadores das plantações de bananeiras e nos carris deslizavam composições com muitos vagões atrelados, todos eles carregados de frutos.
Naquele sábado o calor sufocava-o como até então nunca sucedera e ele ainda estava aturdido com a suspeita, que o tomara na casa de Rebeca. Seria que a morte dos pássaros correspondia a um sinal quanto ao iminente Apocalipse?
Na cabeça agitavam-se-lhe as cansadas meninges para recordar se no livro bíblico em causa existiria alguma referência a tal tipo de fenómeno.
No céu, singularmente limpo, não havia o mínimo sinal de uma ave. A associação de ideias que o levava a recordar os tempos de jovem seminarista resultou numa nova revelação: «O Judeu Errante». Foi precisamente no instante em que o comboio apitou para assinalar a entrada na estação que o vieram chamar para dar a extrema-unção a uma moribunda. Por isso não assistiu ao espantoso momento em que um rapaz, vendo-o de uma das carruagens concluiu ali haver um hotel se até um cura tinha. Estando com fome julgara ter tempo para almoçar enquanto se prolongava a pausa do transporte naquele nenhures.
Enganou-se claro: ainda mal lhe tinha chegado a sopa, quando voltou a ouvir o apito. Desesperado correra para de onde viera o alerta mas em vão: já o comboio se afastava para a estação seguinte. E, pior ainda, com os documentos coligidos com tanto esforço para que a mãe se reformasse do cargo de professora da terra donde viera.
Sem outro remédio o forasteiro viu-se obrigado a pernoitar no modesto quarto de hotel até que outro comboio o pudesse dali levar no dia seguinte.
Nessa mesma noite o padre António viu-se acometido de um ataque, que o fez acreditar na forte possibilidade de nunca mais se vir a levantar da cama..
Estranhamente, na manhã seguinte, recobrara a energia e já consolidara o sermão a ofertar aos paroquianos na missa desse domingo. Que pressentia vir a ser o do dia mais importante da sua vida, porque a morte dos pássaros, mesmo dos três encontrados no corredor, obrigava a uma expiação.
Apesar da proprietária do hotel o avisar que quase ninguém ia à missa, porque o velho padre estava tonto e dizia andar a ver o diabo, o forasteiro decidiu matar o tempo ali se dirigindo:
“Verificou que era uma povoação moribunda com ruas intermináveis e poeirentas, e com casas de madeira com tetos de zinco, que pareciam desabitadas. Era uma terra com ruas sem erva, casas com janelas e um céu profundo e maravilhoso, ainda que  com um calor asfixiante.
Pensou não haver sinal, que distinguisse o domingo de qualquer outro dia.
Enquanto caminhava pela rua deserta recordou o que a mãe lhe costumava dizer: todas as ruas de qualquer terra conduzem inexoravelmente à igreja e ao cemitério.
Nesse instante desembocou numa pequena praça empedrada com um edifício caiado com uma torre, um galo de madeira na cúspide  e um relógio parado nas quatro e dez.”
É para ele e para um pequeno número de fiéis que o padre António profere o melhor discurso de toda a sua vida, sem vaidade, sem soberba. Apenas pelo regozijo de fundir o seu espírito no de Nosso Senhor.
Chamada por Argeñida, que lhe veio dizer o quanto estava louco o padre ao atribuir ao Judeu Errante a morte dos pássaros, Rebeca apressa-se a acorrer à igreja, eivada de profundo terror. A tempo de o ouvir:
“Juro que se atravessou à minha frente esta madrugada, quando regressava de administrar os santos óleos à mulher de Jonas, o carpinteiro. Juro que tinha o rosto imbuído da maldição do Senhor e que deixava cinzas fumegantes como rasto.”
O sermão é tão impressivo que toda a aldeia acorre a ouvi-lo. E ele manda o acólito recolher o dízimo sob o argumento de ser necessário para que se mande embora o Judeu Errante. E, em surdina, diz-lhe que, no fim entregue as esmolas recolhidas ao forasteiro para que possa comprar um chapéu que substitua o de aspeto miserável, que não chegara a tirar da cabeça durante a cerimónia.

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