sexta-feira, abril 28, 2017

(DL) Dos labirintos rodoviários às pocilgas da margem sul com brancuras assassinas de permeio

Há decisões suscetíveis de nos serem fatais, mesmo se ponderadas nos seus riscos e oportunidades. Se fosse a Razão a comandar-nos não hesitaríamos em apostar na prudência, no recuo. Só que as emoções também contam e são elas a orientarem-nos na direção errada. Seguir em frente, mesmo que as consequências se tornem imprevisíveis.
Essa teimosia era muito minha no tempo em que, regularmente, fazíamos em família longas viagens de carro para além-Pirinéus. E, numa dessas vezes, quando pretendia chegar a casa nessa mesma noite, perdi-me na saída de Madrid tomando a direção das Astúrias sempre a desejar que milagrosa placa de direção nos devolvesse à ocidental praia lusitana. Era na época em que não existiam ainda telefones portáteis nem computadores pessoais, quanto mais GPS’s. O único apoio residia nos confusos mapas onde as cores das estradas todas se sobrepunham.
Resultado: foi uma das primeiras vezes na vida em que, a contragosto, me vi obrigado a recuar. Mas já a viagem se transformava num martírio, mesmo partilhando o esforço ao volante com a cara metade.
Em Mérida parámos uns minutos para descansar, mas estávamos ambos naquele estado em que nem conseguíamos verdadeiramente descansar (até pelos mitos urbanos sobre os assaltos a carros durante a noite) nem aguentávamos os olhos abertos por muito tempo.
Ainda distante o tempo de contarmos com autoestradas lá atravessámos a fronteira, prosseguindo madrugada fora. Quando, enfim, apanhámos o troço entre a Marateca e Lisboa, julgámos facilitada a tarefa com a atenção cingida ao trânsito nas nossas costas. Doce engano: na área de serviço de Setúbal voltámos a parar para lavar a cara com o que julgávamos ser a água resultante do gelo derretido da pequena arca em que trouxéramos o que beber e comer durante a viagem. Não demos pelo facto de uma garrafa de sumol se ter aberto e misturado com o precioso líquido. O resultado foi chegarmos à Costa da Caparica com a cara peganhenta num agravamento insuportável do nosso incómodo.
Vem isto a propósito do filme rodado pelo islandês Baltasar Kórmakur baseado num caso real ocorrido nos anos noventa. Rob, o chefe da expedição incumbida de levar meia-dúzia de clientes ao pico mais elevado da Terra, tinha a perfeita noção de perigar a vida se o regresso ao campo de apoio fosse para além das catorze horas. E quase todos tinham ali chegado, tirado fotografias e fixado as respetivas bandeiras.
Sobrara um milionário americano com problemas na vista já conformado com o fracasso e Doug, um carteiro australiano, que por três vezes acumulara economias para financiar a viagem, falhando as duas anteriores a meio caminho.
Agora conseguira escalar mais alto, até quase ficar com a meta à vista. E, apesar de instado a regressar, exige seguir em frente, mesmo que cada passo constitua um martírio. Por isso Rob pondera um instante no que fazer: deixá-lo prosseguir num resto de viagem só de ida, ou ajudá-lo a lá chegar e amaprá-lo na descida na expetativa de, por milagre, o dia se prolongar para além do possível.
Nesse instante ficou decidida a sua morte, porque consegue arrastar o companheiro até ao topo, mas já não sobejam forças para o retorno. A teimosia insensata do australiano explica três das mortes subsequentes, não só a de ambos, mas de outro alpinista, que arriscara voltar a subir para os ajudar.
Num filme menor, mas carpinteirado com grandes recursos de produção, essa lição é a mais importante, porque aplicável a momentos decisivos das nossas vidas, como pude constatar nesse episódio vivido na Espanha dos anos oitenta. Porque são frequentes as vezes na vida em que desejamos algo com muita determinação, mas sentimo-lo escapar-se por não serem propícias as circunstâncias. Felizmente sempre que decidi avançar com a disposição de dar o peito às balas saí-me bem. Por aleatória sorte, que bem poderia ter decidido desiderato contrário. Mas também reconheço verdade na afirmação de ser necessário muito trabalho para que ela resulte. Sobretudo no que à profissão diz respeito. Porque não foi rara a ocasião em que vi quem arriscasse demais, sem ter o potencial para corresponder a todos os imponderáveis e tivesse fracassado com estrondo, mesmo com perda da própria vida.
Não tendo diretamente a ver com isso, surgiram-me hoje várias referências, entrevistas e comentários ao novo romance de Bruno Vieira do Amaral, a quem parece prometido novo sucesso de vendas de boas críticas. Em «Hoje Estarás Comigo no Paraíso» ele parte à procura de um primo, encontrado morto numa pocilga, assassinado com a mesma faca usada pelos magarefes para sacrificarem os porcos.
O que terá feito decidir João Jorge a, naquele longínquo dia de 1985, intentar o roubo dos porcos de uns vizinhos cabo-verdianos na Baixa da Banheira? É a resposta que o autor vai procurar junto de quem o terá conhecido. Se de início pensava dar-lhe forma jornalística, ou de ensaio, meio histórico, meio sociológico, a exiguidade de informações obrigou-o a desviar-se para o lado da ficção. Ciente de que, muitas vezes, a imaginação constitui atalho mais fiável para alcançar a verdade. Sobretudo quanto ao que o passado do defunto em Angola nos seus primeiros anos de vida terá influído para tomar a infausta decisão de apossar-se de propriedade alheia.
Tal como o Rob do filme, João Jorge deverá ter tido disponibilidade bastante para ponderar dos prós e contras de fazer o golpe juntamente com outro amigo. Não poderia imaginar que, descoberto em flagrante logo seria degolado.
Em tal estória o autor poderá ter aproveitado para, não só se conhecer melhor, mas também aprofundar as poucas reminiscências retidas pelos familiares, vizinhos e outros desconhecidos, sobre esse rapaz de quem não subsiste sequer uma campa para conservar-lhe a memória.
O romance constitui, pois, uma espécie de resgate da identidade de quem, vivendo tão pouco, recupera de alguma forma a existência sob a forma desta evocação empreendida pelo primo a trinta anos de distância.

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