quarta-feira, abril 26, 2017

(DL) O que lemos e o que recordamos

Se gosto tanto de ler é  por acontecerem -  amiúde - momentos de verdadeira magia ao traduzir as palavras de outrem em exercícios de imaginação recriados por esconsas reminiscências. Evocam não tanto os acontecimentos do passado, tal qual realmente decorreram, mas como desejaria que assim tivessem sucedido, melhores houvessem sido as circunstâncias. 
Um exemplo concreto: de manhã estava nas últimas páginas de um romance de Javier Cercas em que conta o convívio com Roberto Bolaño, quando este acabara de receber notícia da doença incurável, que depressa lhe abreviaria a demasiado precoce vida.
É ele quem lhe fala de um singular personagem, conhecido num parque de campismo há mais de vinte anos, que passava os meses de verão sem mudar de indumentária: o calção de banho a negar-lhe por completo a almejada nudez. Na pele ostentava as cicatrizes de ter combatido na Guerra Civil de Espanha pelos vencidos, e no subsequente conflito mundial pelos vencedores.
Miralles era um homem com que mais ninguém se poderia comparar tão original fora o percurso pelas muitas décadas vivenciadas. Por isso estimulava tão significativamente o lado criativo do novo amigo. Bolaño puxava-lhe pelas memórias ciente de, mais cedo ou mais tarde, o transmutar num personagem ficcional dos seus romances.
Uma noite levantara-se de madrugada e ouviu algo que o fez aproximar-se da roulotte do amigo. Ali o viu a dançar um pasodoble, que andava sempre a trautear, e levando pelo braço a jovem prostituta, que se tornara sua amante.
O instante era tão estranho e belo, que o escritor escondeu-se atrás de um carro para melhor o apreciar. Mas depressa compreendeu o quanto cometia sacrilégio face a algo cujo perfeição só respeitava a quem o protagonizava. Por isso afastou-se dali.
Estes poucos parágrafos em que Cercas fala do episódio da vida do amigo suscitou-me de imediato um conjunto de associações de ideias, que tanto envolveram um dos quadros mais belos de entre os que Paula Rego assinou, como a evocação da recôndita infância, quando as noites de luar me pareciam espantosas em promessas e mistérios. Por exemplo aquela em que, ao colo do meu pai, percorri a azinhaga entre a quinta do meu avô e a estrada que me devolveria a casa.
A minha irmã fora levada à RTP pela tia Maria do Carmo para comparecer num concurso infantil e para que toda a família acompanhasse tão grande motivo de orgulho do meu pai, ele cuidara de instalar uma televisão na maior divisão da casa do patriarca do meu ramo materno, ali se juntando tios, primos e outros parentes próximos, todos eles a habitarem as redondezas e a maravilharem-se com os prodígios da moçoila.
Dessa participação mediática quase nada me lembro: guloso como sou só me ficaram na memória os chocolates por ela recebidos e comigo partilhados. Mas aquele átimo do que fui, registou sobretudo o azul maravilhoso da abóbada acima da minha cabeça e o brilho da Lua a acompanhar-nos passo a passo noite adentro.
O que se passou ou o que poderia ter-se passado? Não me admiraria, que essa nem sequer fosse noite de Lua Cheia. Ou que, depressa cansado com o meu peso, o meu pai me tivesse forçado a prosseguir caminho pelos próprios pés. Mas a realidade endeusada, que de então ficou, voltou a ganhar laivos encantatórios com o estímulo lavrado pelas palavras escritas do escritor espanhol.

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