domingo, abril 23, 2017

(DL) Recordar Gabo: Um dia depois de sábado (2)

O velho padre também foi o primeiro a sentir o odor de morte impregnado no ambiente da vila, nele encontrando o tema mais apropriado para o sermão da missa de domingo:  a habilidade de Satã em infiltrar-se no coração humano através de um dos cinco sentidos. Mas foi tal a confusão suscitada na mente entre a realidade, as palavras ouvidas aos paroquianos e os textos bíblicos que, chegado o momento da homilia, acabou por improvisar um discurso sobre a caridade,  para ele mesmo incompreensível.
Outrora cultor dos clássicos gregos e admirado pela sapiência, o padre enterrara-se na vila e perdera, pouco a pouco, os interesses e capacidades. Os paroquianos consideravam-no soporífero na forma de discursar e não acreditavam nos seus supostos encontros com o Diabo. Ele mesmo, dado à reflexão metafísica, reconhecia há muito nada pensar, quando se dedicava à contemplação.
“Um sábado - nove dias depois de terem começado a cair pássaros mortos - o padre Antonio Isabel del Santísimo Sacramento del Altar dirigia-se à estação quando caiu um pássaro agonizante  aos seus pés, precisamente em frente à casa de Rebeca. Um resplendor de lucidez dominou-lhe a mente, dando-se conta de que o pássaro, ao contrário dos outros, poderia ser salvo. Tomou-o nas mãos e bateu à porta de Rebeca no momento em que ela se despia para dormir a sesta.”
É ao referir o parentesco distante da viúva com o bispo, que Gabriel Garcia Marquez introduz os nomes de Aureliano e Arcadio Buendia, seus primos, que serão personagens maiores do épico «Cem Anos de Solidão».
“- A vida de um animal - disse o padre - é tão grata a Nosso Senhor como a de um homem.”
E assim tenta convencer Rebeca a facultar-lhe a água e a sombra necessárias à salvação do pássaro. Algo que ela não dá de bom grado aterrada, que ainda está com todo o cenário inquietante dos dias anteriores.
A impiedade da parente dos Buendia desgosta o padre, que vê os seus esforços baldados: o pássaro morre graças à brutalidade com que ela o trata. E, no regresso à residência paroquial, Antonio conhece inesperada epifania:
“Um instante decorrido, tendo-o na mão, o sacerdote compreendeu que aquele corpo minúsculo e indefeso tinha deixado de respirar. Esqueceu-se então de tudo: da humidade da casa, da concupiscência, do insuportável cheiro a pólvora no cadáver de José Arcádio Buendia, e percebeu a prodigiosa verdade em que estava imerso desde o início da semana. Ali mesmo, onde a viúva o via a abandonar a casa com o pássaro morto nas mãos e uma expressão ameaçadora, assistiu à maravilhosa revelação de ter esquecido o Apocalipse enquanto perdurava a chuva dos pássaros mortos e só sentia saudades pela felicidade de quando não havia calor.”
Nesta altura da história ainda ela não chegou a meio, Mas prosseguiremos a sua abordagem no texto de amanhã.

Sem comentários: