quinta-feira, fevereiro 23, 2017

(DL) Recordar Gabo: «A Revoada»

Ao instalar-se em Cartagena, o jovem Gabriel Garcia Marquez  estava decidido a fazer Direito na Universidade local. Mas o encontro com Manuel Orivella, que acabara de fundar o jornal «El Universal», revelou-se determinante, porque foi contratado para nele publicar crónicas regulares: em menos de dois anos saem quarenta artigos da sua autoria.
Uma reportagem em Barranquilla deu-lhe o ensejo de conhecer um grupo de escritores, entre os quais se contava Alfonso Fuenmayor, que chefiava a redação do «El Heraldo». Não tarda que aí se radique em busca de maior liberdade e melhor salário. Estava-se em 1949 e andava afadigado na escrita do primeiro romance a que começou por intitular provisoriamente «La Casa».
Trabalhando à peça, assina  uma coluna humorística diária entre 1950 e 1952 e alguns artigos e editoriais nesse jornal barranquenho . No entretanto, e dentro do próprio jornal, dirigirá um efémero semanário - «La Cronica» - que dura pouco mais de um ano.
Ainda solteiro, Gabo vive boémia intensa em tertúlias, que não se cingem às preocupações literárias. Ramon Vinyes, o decano do «grupo de Barranquilla», será a sua inspiração para o velho catalão que, em «Cem Anos de Solidão», possuía uma admirável livraria. Mas outras influências o inebriam: Virginia Woolf, Joyce, Kafka, Faulkner. Deste último os autores latino-americanos dessa geração captam o apego à terra, as técnicas narrativas, os temas históricos, a dimensão misteriosa, simbólica, irracional. E, no entanto, é a cultura caribenha, tão embebida no quotidiano da cidade, que mais deslumbra o futuro escritor.
Alvaro Mutis, outro grande autor quatro anos mais velho,  incita-o a concluir o romance «A Revoada», que há muito andava a escrever e a reescrever.  A publicação acontecerá em 1955 e é nele que nos deteremos nesta etapa de abordagem de toda a carreira literária do autor.
Em «La hojarasca», seu título original, aparece Macondo pela primeira vez.
Numa noite de setembro de 1928 três pessoas reúnem-se para velar um morto, que se enforcara nessa mesma manhã. É o avô, a filha Isabel e a sobrinha de onze anos, que observam a preparação do enterro e sofrem com a ausência do padre e da própria autorização do presidente da câmara, que alimentara o ódio coletivo contra o falecido. Com alguma razão, porque ninguém esquecera como, sendo médico, recusara  cuidar dos feridos, que lhe tinham ido bater à porta numa noite de eleições, que se concluíra em confrontos entre vencedores e vencidos.
Doravante seria amaldiçoado pelos conterrâneos que, com ódio e júbilo assistem ao que se irá passar.
Mas quem é esse homem cujo nome nunca conheceremos?
Sabe-se que viera instalar-se em casa do avô, um antigo coronel, e aí vivera oito anos, engravidando uma criada e partindo com ela. Tê-la-ia matado, já que mais ninguém a voltara a ver? E porque será que o avô desafia toda a aldeia a facultar-lhe a sepultura, apesar de se destinar a quem lhe traíra a confiança? Que elo unia os dois homens?
Gabo dá-nos a conhecer que o doutor salvara um dia o coronel e obrigara-o a prometer que, no futuro, quando morresse, não deixasse de lhe atirar um punhado de terra por cima do caixão.
É neste mistério que Gabriel Garcia Marquez consegue envolver-nos, com o título em espanhol a referir-se à alcunha dada a quem, em tempos, vinha procurar fortuna em Macondo e se associavam a folhas mortas.

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