domingo, fevereiro 05, 2017

(DL) Recordar Gabo (1)

Costumo dizer que, acaso me visse no célebre dilema de escolher três livros para me acompanharem numa ilha deserta, um deles seria de Gabriel Garcia Márquez: «Cem Anos de Solidão».
Se conheci momentos mágicos enquanto leitor foi quando abri a primeira página desse romance e dei com este início perfeito: "Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía haveria de recordar aquela tarde remota em que o pai o levou a conhecer o gelo."
Espreitando a biografia do autor há muita semelhança entre Aracataca, onde nasceu, e a vila de Macondo onde se passam muitos dos  seus romances, contos e novelas. Olhando para o mapa da Colômbia, uma e outra situam-se no centro da região de plantações bananeiras então em pleno auge da sua exploração por multinacionais norte-americanas. Muito embora a verdadeira Macondo pouco tenha a ver com a sua homónima ficcionada.
Décadas depois, no título do seu livro de memórias, Gabriel reconheceu ter vivido para contar por escrito tudo quanto vira e conhecera. Até mesmo quando ainda nem nascido era, mas se conjugavam os fados para que viesse a constituir-se no corolário do complicado namoro dos pais. Essa estória serviria de inspiração para «Amor em Tempos de Cólera».
Avancemos então para essa proto-história do futuro escritor, na perspetiva de toda a sua longa vida possibilitar-nos o contacto com muitas mais: Luísa, a filha do coronel Nicolás Mejia e de Dona Tranquilina Marquez, deparou com a forte resistência dos pais, quando se tomou de amores pelo pobre mestiço da estação telegráfica, Gabriel Garcia, conhecido partidário do partido conservador e, pior ainda, namoradeiro incorrigível.
Nem mesmo com o forçado afastamento de Luísa de Aracataca, o fervor amoroso do par abrandou, de tal forma as serenatas, os poemas de amor e as numerosas cartas do pretendente tinham inflamado o romântico coração da rapariga.  Rendidos à impossibilidade de lhe contrariarem a vontade, o coronel e a esposa acabaram por aceder ao casamento da filha com o futuro genro, embora se escusassem a comparecer à cerimónia em Santa Marta, cidade a que aportei há cerca de vinte anos desconhecendo ainda quão determinante fora para aquele que já era um dos meus autores de eleição.
O primeiro dos onze filhos de Gabriel e Luísa nasceu a 6 de março de 1927, durante uma noite de tempestade e em que o drama esteve quase a consumar-se, porque o bebé vinha com o cordão umbilical em torno do pescoço. No futuro o escritor sempre associaria a atroz claustrofobia a essa experiência traumática.
Dois anos depois o telegrafista ambicionou melhorar de vida, estabelecendo-se em Barranquilla como farmacêutico, e confiando o primogénito a Nicolás e Tranquilina.
Ele conta-lhe muitas histórias ocorridas entre 1899 e 1902, quando participara ativamente no conflito civil, que ficaria para a História como a Guerra dos Mil Dias, tornando-se num dos heróis dos liberais. Além de ser professor rigoroso e notável contador de histórias, Nicolas levava o neto todos os anos ao circo e deu-lhe a conhecer pela primeira vez o prazer de um gelado, numa das lojas da United Fruits. A estória aproveitada para o tal começo de «Cem Anos de Solidão»!
Nicolas era igualmente admirado pela coragem com que denunciara o massacre de trabalhadores numa das plantações locais, quando o neto tinha apenas um ano de idade, e por possuir um código ético, que o levara a dizer a Gabriel ser o homicídio um fardo demasiado pesado a consciência de quem o perpetra.
Dona Tranquilina exerce outro tipo de influência: o de falar de coisas extraordinárias como se fossem banais. Por isso as suas histórias eram invariavelmente sobre os fantasmas e espíritos sobrenaturais, que habitavam aquela casa há muito na família, bem como premonições, presságios e profecias, que muito contribuiriam para a imaginação do neto e para a sua natural inclinação para se tornar num dos maiores expoentes do realismo mágico da América latina.

Sem comentários: