segunda-feira, fevereiro 20, 2017

(DL) A quotidiana leitura do recente romance de Paul Auster (I)

À medida que vou avançando no longo romance de Paul Auster fica a sensação de estar a percorrer diferentes narrativas interligadas apenas pelo facto de contarem com personagens semelhantes, mas aos quais as circunstâncias encarregam de diferenciar. O Archie Ferguson que fica órfão do pai, carbonizado no incêndio do grande armazém de mobiliário e de eletrodomésticos da família, é diferente do que, em texto anterior, dei conta de morrer aos treze anos na sequência da queda de um ramo de carvalho sobre a sua cabeça.
Quando Stanley Ferguson foi sepultado, a mulher e o filho vão procurar nova vida em Manhattan mudando-se para um apartamento em Central Park West.
“O avô chamou-lhe um curioso interregno, ou seja , um tempo que ficava entre dois tempos, um tempo de tempo nenhum em que todas as regras sobre como deveríamos viver tinham sido descartadas, e embora o rapaz sem pai compreendesse que não podia durar para sempre, desejava que se pudesse ter prolongado mais do que os dois meses que lhe tinham sido dados, mais dois meses para além dos dois primeiros, talvez, ou mais seis meses, ou talvez um ano.” (pág. 191)
Embora estivessem a viver o seu luto, Rose e Archie passavam juntos as vinte e quatro horas por dia, algumas delas a verem todos os filmes estreados nos vários cinemas da Grande Maçã.
Passado esse tempo, Archie começa as aulas na Hilliard School for Boys, onde é nítida a sua diferença social em relação aos endinheirados colegas, ademais quase todos católicos.
Não é sujeito a bullying, mas cedo compreende não ser aquele o tipo de sítio com que se sentisse identificado: “mesmo que não percebesse os costumes e as crenças peculiares do mundo onde tinha entrado, ele fazia o melhor que podia para respeitá-los, e nunca censurou a mãe nem a tia Mildred por terem-no mandado para lá”. (pág. 194)
As notas, porém, serão péssimas, por ele decidir-se a testar a existência de Deus, esperando pelo seu castigo. Por essa altura Rose, que dissociara-se do apelido Ferguson para recuperar o Adler de solteira, começou a trabalhar como fotógrafa para a Random House e para algumas revistas, que a faziam ausentar-se de casa mais frequentemente. Com oito anos o filho vive o fascínio pelos filmes de Laurel e Hardy.
As notas no novo estabelecimento de ensino também melhoram significativamente: “acabaram-se os blazers e as gravatas, acabou-se a missa matinal, acabaram-se as viagens de autocarro por Central Park, acabaram-se os dias enfiado num edifício sem raparigas, tudo melhorias nítidas, mas a maior diferença entre a terceira e a quarta classe não foi tanto o salto para outra escola, mas sim o fim do duelo de Ferguson com Deus. Deus fora derrotado, exposto como uma não existência impotente que já não podia castigar nem inspirar medo.” (pág. 212)
Os anos passam e, no início da puberdade, Rose já lhe dera um padrasto afável - Gil Schneiderman - e, dessa nova tribo viria a conhecer a prima Amy, com quem descobriria a magia do primeiro beijo.

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