terça-feira, fevereiro 28, 2017

(DL) A quotidiana leitura do mais recente romance de Paul Auster (IV)

Com o calhamaço quase todo lido já  me é possível dar uma opinião mais consolidada sobre «4, 3, 2, 1»: não será a obra que do autor mais me tenha fascinado, mas é decerto a mais ambiciosa. Para além dos quatro personagens principais, que são variações possíveis do mesmo Archie Ferguson, existem dezenas de outros, ora só aparecendo numa dessas possibilidades, ora desmultiplicando-se nelas todas e com características diferentes.
Existe, igualmente, uma abordagem colateral dos grandes acontecimentos históricos, que passam pela vida dos protagonistas desde a disputa eleitoral entre Kennedy e Nixon até à guerra do Vietname, das lutas do Movimento dos Direitos Civis à revolta dos campus universitários em 1968.
Mas vale a pena retomar o romance onde o deixara em texto anterior, mais precisamente em 1962:
“O tempo andava em duas direções porque cada passo para o futuro carregava uma memória do passado, e embora Ferguson ainda não tivesse feito quinze anos, tinha acumulado memórias suficientes para saber que o mundo à sua volta estava continuamente a ser moldado pelo mundo dentro de si, tal como a experiência do mundo de todas as outras pessoas era moldado pelas suas próprias memórias, e embora toda a gente estivesse ligada pelo espaço comum que partilhava, as suas viagens através do tempo eram diferentes, o que queria dizer que cada pessoa vivia num mundo um pouco diferente do de todas as outras.” (pág. 352)
Na versão de Archie em que os pais se haviam separado e a mãe voltara a casar com Dan Schneiderman depois deste ter enviuvado, ele vive o entusiasmo da participação em campeonatos escolares de basquetebol.
Um dia, em Newark, tinha participado num jogo sucessivamente empatado após dois prolongamentos. E como num lance único a sua equipa ganha o jogo, ele e os colegas fugiram apressadamente para fora do ginásio, porque sendo todos brancos, haviam vencido outra completamente constituída de jovens negros, apoiados pelas bancadas ululantes.
Na fuga, que o treinador impusera na derradeira paragem, Archie sofreu um violento soco de um desconhecido compreendendo como o fim da segregação racial seria objetivo político mais difícil de concretizar do que se julgaria.
Auster confidencia-nos, entretanto, que esta versão de Archie Ferguson acabará mal porque, pretendendo ser escritor, nunca conseguira ver nenhum dos seus romances publicados, acabando por se tornar num vagabundo bêbedo na Bowery. Mas, por enquanto, essa vocação literária acontece-lhe quando lê «O Crime e Castigo» e fica completamente rendido à maestria de Dostoievski.

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