quinta-feira, fevereiro 23, 2017

(DIM) A quotidiana leitura do mais recente romance de Paul Auster (II)

Numa das possíveis vidas de Archie Ferguson, enquanto adolescente, descobrimo-lo enfadado com a quotidiana  convivência familiar, que o leva a desejar a integração num colégio interno longe de casa. Infelizmente, apesar de cada vez mais abastado, Stanley não lhe autoriza o devaneio: se paga impostos para que o filho tenha uma boa escola  pública à beira de casa, é nela que prosseguirá os estudos.
A mãe poderia suscitar-lhe alguma simpatia, mas pressente-lhe a infelicidade desde que se forçara a abandonar o estúdio de fotografia, compensando-a agora com as duas ou três noites por semana dedicadas ao bridge fora de casa.
“Ele pressentia que ela era tão infeliz como ele, mas não podia falar com ela sobre isso, era demasiado novo para se meter em assuntos privados, e no entanto era óbvio para Ferguson que o casamento dos pais, que sempre lhe fizera lembrar uma banheira cheia de água morna, tinha agora resfriado, degenerando numa coabitação aborrecida e sem amor” (pág. 239).
Em alternativa ao recusado colégio, Archie volta ao Campo Paradise para se distanciar nos dois meses de verão. Reencontra o primo Noah, que voltara a merecer esse laço familiar desde que o pai voltara de Paris e retomara a relação amorosa com a tia Mildred, mesmo vivendo em apartamentos distintos. Mas quem se tornará no seu melhor amigo é Artie Foreman, um outro miúdo judeu com quem a empatia fora imediata. No entanto, nesse verão, ele morre-lhe quase ao lado, quando acometido de súbita e inimaginável aneurisma cerebral.
Regressado às rotinas escolares, Archie escreve, então, uma novela, que muito deverá a essa efémera amizade. Nessa história descreve a vida de um par de sapatos, Hank e Frank, desde a fábrica até à loja, da sua compra por um polícia e sua intensa utilização pelas ruas da cidade até esse dono casar, deixando-se convencer pela mulher a abandoná-los num armário. O desenlace será fatal: já endurecidos pelo tempo e pela falta de graxa, acabam no incinerador do prédio.
Quando termina essa sua primeira criação literária, Archie submete-a ao veredito de uma professora particularmente conservadora nos gostos e nos valores. Obviamente Mrs. Baldwin detesta-a pelo uso intensivo do vernáculo e pela sexualidade libertina do polícia e das numerosas amantes até, enfim, se render aos laços do matrimónio. Dá-lhe, porém, o mesmo conselho um dia transmitido por Edgar Poe a um jovem candidato a escritor: “Sê ousado - lê muito - escreve muito - publica pouco - mantém-te longe dos espíritos pequenos - e não temas nada”. (pág. 273)
Mrs. Baldwin não consegue compreender a metáfora contida na novela: a fábrica dos sapatos era África, os dois protagonistas representavam os escravos trazidos para serem intensivamente utilizados nos campos de algodão, o armário onde acabavam abandonados equivalia aos campos de concentração, e o incinerador que os volatilizava, evocava as câmaras de gás.
Evidentemente que os tios Don e Mildred apercebem-se dessa simbologia, Noah devora-a com entusiasmo, quase comparável à reação de Amy Schneiderman, que ocupara o quarto e dormia na antiga cama dele na casa onde a família antes habitara.
Esta versão de Archie estará destinada à carreira das letras - é o que podemos pressupor.

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