sábado, setembro 24, 2016

(V) «Julieta» de Almodovar

A maior diferença que encontro entre a maternidade e a paternidade está na dimensão do sacrifício, que se pode fazer pelos próprios filhos. No caso dos pais essa devoção passa, normalmente, por se garantir o máximo de rendimentos possíveis para que nada falte aos rebentos, enquanto no caso das mães essa capacidade de sacrifício vai até ao limite de se prescindir da própria vida.
Julieta assim o confirma. Convidada pelo namorado, Lorenzo, a vir para Portugal passar uma temporada enquanto ele escreve o próximo romance, um encontro casual com uma amiga de infância da filha muda-lhe subitamente os planos. Bea encontrara Antia numa povoação à beira do lago Como e soubera-a mãe de três filhos.
Para Julieta essa informação é a luz ao fundo de um longo túnel, iniciado anos atrás, quando, sem nada o fazer prever, a filha escapulira-se-lhe na sequência de um retiro nos Pirenéus.
A longa carta que escreve em sua intenção no apartamento alugado no prédio madrileno onde haviam vivido depois da morte do marido, permite a Julieta regressar às recordações passadas, que a tinham conduzido até ali já na condição de mulher de meia-idade.
Sabemos, assim, que visitara Redes, na Galiza, depois de viver um episódio, que lhe estimulara o sentimento de culpa: num comboio um homem inquietante dirigira-lhe a palavra, ela evitara-o e não tardaria a vê-lo atirar-se para debaixo da composição. Se o tivesse escutado poderia ter-lhe evitado desenlace tão trágico?
Acaba por ficar na província nortenha ao casar-se com Xoan, um jovem que vive da atividade piscatória no seu pequeno barco de que é único tripulante. Mas esse enlace obriga-a a conviver com a empregada, a sinistra Marian que lembra a srª Danvers na «Rebecca» de Hitchcock quanto ao amor inconfessado pelo patrão e pelo desejo de dificultar o mais possível a vida à rival por ele trazida para a residência.
Durante uma dúzia de anos vivem felizes apesar de Julieta não aprovar a relação do progenitor com a empregada marroquina, que contratara para cuidar da mulher durante o estado terminal da sua doença.
O drama acontece, quando Antia está num acampamento. Julieta empurrara Marian para a reforma compulsiva e ela vinga-se: antes dela ali viver Xoan passava as noites com Ava, uma pintora local, de que ela se tornara amiga, e continuara a fazê-lo nas ocasiões em que se deslocara à Andaluzia para visitar a mãe doente.
A vontade de rutura conjugal é imediata e Xoan sente-o ao chegar a casa e ela dali sair para dar um passeio junto ao mar. Ora, indo pescar nesse mesmo dia, ele morre no naufrágio suscitado pelo inesperado temporal, que se gera durante a tarde.
Para Julieta é forçoso sentir a culpa por ter tido do marido uma despedida tão oposta ao amor, que com ele vivera até então.
Essa culpa torna-se, então, no eixo da intriga, porque dela se sentindo possuída, Julieta não perdoa ao pai a traição a que sujeitara a mãe, numa réplica paralela à sua própria história.
Muda-se, então, para Madrid com Antia, que terá em Béa, conhecida no acampamento, a sua melhor amiga. Nos anos seguintes, até ela chegar aos dezoito anos, tudo quanto faz é canalizado para essa filha, cujos dias controla quase até à asfixia.
Desconhece que ela viveu os últimos anos a remoer-lhe a acusação de culpada pela morte do pai, já que soubera por Marian as circunstâncias de desequilíbrio conjugal, que poderia ter explicado o acidente de Xoan. E, chegada à maioridade, decidira castigar a mãe, não só aderindo a uma seita fanática, mas também sonegando-lhe qualquer informação quanto ao seu paradeiro. 
Cheguei a temer o pior, quando o final pareceu encaminhar-se para um xaroposo happy end, mas seria negar a Almodovar a sapiência outrora reconhecida a Douglas Sirk como o mais talentoso criador hollywoodiano de melodramas. 
O final em aberto deixa-nos perante múltiplas hipóteses que não deixam de conter uma inequívoca mensagem moral: o cuidado a ter quando se culpa alguém, porque, mais cedo ou mais tarde, essa prova de intolerância pode voltar-se contra nós.
Perfilho eu esta lógica? Não, definitivamente não. Assumo a costela intolerante, que me faz nunca poder desculpar quem, sobretudo na política, adota comportamentos arrivistas, delatores ou de prejuízo em relação ao bem comum. Mas não preciso de partilhar essa lógica moralista de Almodovar para concluir que estamos perante um dos seus melhores filmes de entre os que recentemente rodou.

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