quarta-feira, setembro 28, 2016

(L) «O Escrivão Público» de Tahar Ben Jelloun (III)

O narrador do romance que Tahar Ben Jelloun não assumiu como autobiográfico, mas também o não desmentiu, chega à vida adulta com a nomeação para ensinar filosofia num liceu de Tetouan. Depois da experiência de prisão durante dois anos, por causa das ideias políticas, a intenção é dedicar-se o mais possível à profissão.
Mas as dificuldades não tardam: “Alguns pais viam em mim um elemento subversivo semeando a dúvida, encorajando a contestação, suscitando debates e questões numa cidade fechada, tranquila, sossegada, conhecida pelo seu respeito religioso dos valores seguros tradicionais, uma cidade onde nada deveria mudar, cidade do imutável, ecrã erguido diante das torpezas vividas secretamente.(pág. 94)
O sentimento de asfixia diluir-se-á com a chegada a Paris em 11 de setembro de 1971. Não era a primeira vez que ali estava, porque a visitara fugazmente em anos anteriores. Mas agora a intenção era estudar e escrever, nomeadamente sobre os seus compatriotas emigrantes cujas condições reais desconhecia.
“Paris era, antes de mais, a cinzentez naquelas caras compostas, naqueles corpos gastos, naqueles olhares desalentados. Em Marrocos, eu não estava ao corrente. Os emigrantes estavam longe. Nunca se falava deles. Víamo-los chegar no verão em grandes carros sobrecarregados. Algumas pessoas invejavam-nos. Ninguém os lamentava. Eles próprios calavam a realidade das suas condições de vida e de trabalho. Evocavam apenas o lado bom. Inventavam para si um sonho, recordações iluminadas e radiosas. A imagem assim embelezada devia preservá-los de um destino infeliz. Era assim que resistiam!” (pág. 103)
Convenhamos que o retrato social aqui descrito por Jelloun nada difere da que correspondia aos nossos compatriotas por essa mesma época nos bidonvilles.
Nas primeiras cem páginas do romance nunca se sentiu uma ligação do autor à religião maioritária na sua cultura.  Por isso mesmo é com alguma surpresa, que o vemos descrever a peregrinação a Meca concretizada quase logo a seguir: “ao princípio eu estava completamente perdido. Não conseguia libertar-me do entorpecimento que me invadira. Não me reconhecia de todo naquela desordem de cor, de barulho e de pó. Parecia um turista ridículo, esgazeado no meio de uma fauna estranha, particularmente à vontade e até de bom humor”. (pág. 117)
Sente-se então um desenquadramento do narrador em relação aos locais onde vai passando, nunca se sentindo verdadeiramente identificado com nenhum deles. Se a capital parisiense lhe suscita a sensação de nunca deixar de ser um estrangeiro, os episódicos regressos a casa fazem-no sentir como já ali não pertencendo.
O romance tende a revelar-se uma tentativa de ordenar o caos interior suscitado por valores, estímulos e inquietações que o desorientam, o pressionam a encontrar uma âncora efetiva aonde se possa fixar.

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