sexta-feira, setembro 23, 2016

L) «O Escrivão Público» de Tahar Bem Jelloun (I)

Este romance recorre à máscara da autobiografia para, através de um escriba, cedo convertido em narrador habituado a efabular, contar a história da vida de um homem apressado, sempre dividido entre duas viagens e dois amores.
“Escreverei esta história em voz baixa na esperança de discernir a imagem desfocada do espalho. Trata-se de alguém que conheço bem, com que me dei durante algum tempo. Não é um amigo, é um desconhecido”. (pág. 7)
A exemplo do próprio Jelloun, o protagonista nasceu em Fez, passou uns anos em Tânger, exilou-se em Paris, fez a peregrinação a Meca e a Medina, regressando a Marrocos onde se passou a sentir um estrangeiro.
Na infância “tinha motivos para criar asas e propulsar-me na estranheza de várias vidas. Aprendi assim a olhar, a escutar e a rodopiar no ar. O sentimento de fragilidade não me foi de todo ensinado. Experimentava-o todos os dias. Eu mais não era do que um passageiro na infância. (pág. 23)
Podendo ser confundido com um romance de viagens, é sobretudo o itinerário de uma descida até à sensibilidade e ao imaginário com cada etapa a significar reminiscências de acontecimentos e emoções.
Na infância a doença prendeu-o tempo demasiado na proteção do lar: “Eu era uma coisita encolhida num canto da casa, um pequeno montículo que os assustava porque toda a vida, recusada, impedida, se me concentrara nos olhos. O meu olhar perscrutador metia-lhes medo. Como já sabem, eu via tudo, captava tudo nos mínimos detalhes. “ (pág. 23)
Quando ultrapassa essas limitações a reação é contraditória:  “Não me dava muito bem com a saúde. A gente habitua-se a tudo, até mesmo a uma residência de palha entrançada. Tinha saudades do tempo da alcova em que era mais livre, senhor do meu ritmo, feiticeiro e guardião dos meus sonhos. Estava curado, devolvido à massa de crianças a correr pelas ruas ou pelos corredores da escola”. (pág. 29)
O texto acompanha as experiências múltiplas do personagem-narrador, desde o quarto infantil onde, doente, inventava sinais, passando pelas ilusões e deceções da adolescência em Fez, cidade que lhe suscita comentário depreciativo: “Sinto falta do mar. Sinto falta da largueza do horizonte. É disso que mais sinto falta nesta cidade subterrânea, uma cidade clandestina, privada de mar, de cor e de horizonte. Deixo Fez como quem abandona uma esposa infiel ou uma má mãe.” (pág. 39)
A mudança para Tânger onde o pai vai lançar-se numa nova loja suscita-lhe reação mais animosa: “Os tempos eram difíceis e a disposição do meu pai nem sempre boa. Trabalhara toda a vida e via-se, aos cinquenta anos, ~tão pobre como no princípio. (pág. 46).
No próximo texto já apanharemos o narrador nessa adolescência eivada de inquietações.

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