sexta-feira, setembro 16, 2016

(L) «City» de Alessandro Baricco

“Em setembro de 1987, a CRB - editora desde há vinte e dois anos das aventuras do mítico Ballon Mac - decidiu fazer um referendo entre os seus leitores para estabelecer se era caso de fazer morrer Mami Jane. Ballon Mac era um super-herói cego que de dia era dentista e de noite combatia o Mal graças aos poderes muito especiais da sua saliva. Mami Jane era a mãe dele.” (pág.7)
Um super-herói, que de dia era um dentista cego? Logo na primeira página o sinal é dado para a estranheza em que nos iremos entranhar nas duzentas e tal páginas seguintes.
Não é que entremos no mundo da banda desenhada, mas a realidade para que Baricco nos projeta tem pouco de verosímil, tanto mais que se passa quase inteiramente na mente, ou mais especificamente no imaginário, das suas duas principais personagens. Ela é Shatzy Shell, uma rapariga apostada em escrever um western. Ele é Gould, um miúdo acabado de chegar à puberdade e cuja inteligência faz conjeturar a reitores de universidades a forte probabilidade de ali irem contar com um futuro Prémio Nobel.
Eles conhecem-se inicialmente através do telefone: ela está num call center numa consulta de mercado para aferir como reagiriam os leitores de Ballon Mac, se a mãe deste morresse. E Gould telefonara-lhe precisamente para a insultar pela estupidez da questão. E, no entanto, a reação dele pode ter muito mais a ver do que com a desilusão de um leitor a quem abastardassem a série favorita. Há nela muito de psicanalítico, porquanto saberemos, quase no final do romance, que a mãe de Gould enlouquecera progressivamente, quando ele era quase bebé e tivera como consequência ficar definitivamente entregue à sua solidão, mesmo que mitigada pela companhia da governanta contratada pelo pai para o efeito. Papel que Shatzy assumirá.
É nessas circunstâncias que as particularidades de Gould acabarão por lhe parecerem naturais : os dois amigos imaginários, Diesel e Poomerang, que o acompanham por todo o lado, os relatos de combates de boxe em que ele  se entretém horas e horas encerrado na casa de banho ou a vontade cada vez mais notória em ser a criança, que o querem impedir de ser, já que as universidades disputam-lhe a colaboração.
Por seu lado o universo do faroeste criado por Shatzy está, igualmente, muito diferenciado dos cânones a ele associado: há velhas solteironas com pontaria infalível numa cidade parada no tempo e com ouro escondido no seu relógio de água. Mas ela própria, nos aspetos práticos da vida revela-se tão original, quanto a sua criatividade: compra uma roulotte amarela apesar de não terem um carro para a deslocar do quintal!
Numa narrativa muitas vezes desconcertante, aparecem ainda outros personagens pitorescos, o mais singular dos quais é o prof. Mondrian Kilroy, que dá o pretexto a Baricco para desenvolver uma teoria sobre a honestidade intelectual ou a razão dos nenúfares de Monet, para além de chorar abundantemente nas suas aulas.
Apostado em tornar-se em quem deseja e não em quem o querem forçar a ser, Gould acaba por desaparecer com Shatzy a compreender-lhe bem os motivos para de todos se afastar.
Utilizando os diversos registos ficcionais sem pré-aviso dessa mudança, Baricco exige grande concentração, porque estamos num universo donde é muito fácil evadirmo-nos para o nosso próprio imaginário por estes contagiados.

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