domingo, junho 28, 2015

DIÁRIO DE LEITURAS: «Liquen», um conto de Alice Munro

Seres orgânicos, meio fungos, meio algas, os líquenes desenvolvem-se em ambientes inóspitos. Não admira que Alice Munro tenha escolhido este título para o seu conto, porque é de afetos apodrecidos, e até corrosivos, o que aqui está em questão.
A protagonista é Stella, que vive numa casa que o pai construíra nos penhascos argilosos, sobranceiros às águas tranquilas do lago Huron.
A meia idade transformou-a numa “mulher baixa, gorda e de cabelos brancos” sem grande cuidado com o que costuma vestir.
Conhecemo-la, quando recebe David, o ex-marido, que todos os anos, por altura do aniversário daquele que fora seu sogro durante vinte e um anos, vem visitá-la, desta feita acompanhado de Catherine, a sua amante atual. Desta ficaremos a saber tratar-se de, aos quarenta anos, uma espécie de  herdeira espiritual dos hippies, cultivando o interesse por tudo quanto seja paranormal. Não iludindo por isso a fragilidade e delicadeza do seu trato.
Apanhando-a a sós, David mostra-se ansioso por mostrar a Stella a fotografia de Dina, uma rapariga de 22 anos, por quem está disposto a abandonar Catherine. Como se a visita tivesse por verdadeiro objetivo a bênção para a perfídia, que planeia executar.
“Parece líquen!”, reage ela ao olhar para a imagem, que David lhe coloca à frente. Adivinha-se no comentário a improvável exequibilidade daquele “amor” andropáusico.
E, de facto, essa Dina parece ser mais esquiva do que David gostaria de reconhecer. Quando tenta porfiadamente ligar-lhe, nunca a consegue apanhar.  A evidência de, traidor, andar a ser traído, torna-se-lhe óbvia.
Ainda assim, a curta visita serve para David concluir que, no fim de contas, ele e Stella continuavam ligados, explicando-se, assim, o desejo de partilha dos seus segredos mais comprometedores.
O que não imagina é Stella não sentir nada de semelhante em relação a um homem, que já arquivou afetivamente no seu passado. E tradução prática dessa sensação é, uma semana depois, encontrar a fotografia de Dina e vê-la em acelerado processo de degradação.
Ao segundo conto posso intuir que as personagens dos contos de Alice Munro raramente estão sintonizadas nos afetos, havendo sempre barreiras invisíveis a separá-las da aparente afinidade, que possam querer exibir. Ou mesmo convencer-se de que existam!
(este conto está publicado na coletânea «O Progresso do Amor», editada pela Relógio de Água em 2011, datando a versão original de 1986)

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