É compreensível o fascínio por J. Robert Oppenheimer, uma figura tão complexa e contraditória da História. O seu percurso, desde a liderança do Projeto Manhattan até à posterior perseguição política, é um testemunho do peso da consciência e dos perigos da histeria ideológica.
De início era mitigado o meu interesse pelo filme, partindo do pressuposto de já tudo saber sobre o aí abordado, mas o filme consegue ir além da mera biografia.
"Oppenheimer" não é apenas uma reconstituição factual da vida do físico, mas uma imersão profunda na sua psique e nas forças políticas que o moldaram e, eventualmente, o esmagaram. Nolan opta por uma estrutura narrativa não linear, alternando entre três linhas temporais: os anos que antecederam a criação da bomba atómica, o período do Projeto Manhattan e, crucialmente, os interrogatórios a que Oppenheimer foi submetido no pós-guerra. Esta abordagem permite ao espectador não só seguir os eventos, mas também sentir o peso crescente das decisões e as ramificações morais.
Aborda-se a dualidade inerente à figura de Oppenheimer: o génio científico que alcançou o impensável, e o homem atormentado pela responsabilidade das suas criações. Ele explora a contradição entre a ambição científica e a ética moral: o fascínio pela descoberta e o imperativo de desenvolver a bomba antes dos nazis colidem com a crescente perceção das consequências catastróficas. Nolan não suaviza o impacto das bombas, mas foca-se na tortura interna de Oppenheimer face ao poder que ele ajudou a libertar.
Há também o contraponto entre as ligações com as forças politicas de esquerda e a caça às bruxas. A simpatia de Oppenheimer por comunistas confessos, longe de ser um segredo, tornou-se a arma perfeita para os seus detratores durante a era McCarthy. O filme expõe a crueldade e a injustiça da "caça às bruxas" e como a histeria anticomunista corroeu a liberdade individual e a verdade.
Há também o lado mais grotesco, o da mesquinhez politica, senão mesmo da mera inveja. Um dos pontos fulcrais do filme é o papel de Lewis Strauss, o político que orquestrou a queda de Oppenheimer. Nolan retrata Strauss não como um vilão unidimensional, mas como um homem impulsionado pela inveja, pela mágoa e por um profundo ressentimento em relação ao intelecto e carisma de Oppenheimer. É neste duelo entre um intelectual e um político, que a relevância do filme se aprofunda.
Nolan constrói uma narrativa ao mesmo tempo íntima e épica. Cillian Murphy é excelente enquanto Oppenheimer, capturando-lhe a inteligência, o conflito interno e a crescente fragilidade. O elenco de apoio, incluindo Robert Downey Jr. na pele de Lewis Strauss, é igualmente brilhante.
A favor do filme também a intensidade das sequências que retratam o teste Trinity, comunicando o poder aterrorizante da bomba sem a necessidade de mostrar explicitamente as suas vítimas. O design de som e a banda sonora contribuem para a atmosfera de tensão e presságio.
Por outro lado a alternância entre o preto e branco (a perspetiva de Strauss) e a cor (a perspetiva de Oppenheimer) é um artifício inteligente que não só diferencia as linhas temporais, mas também sugere a objetividade e a subjetividade das memórias e acusações.
A relevância de "Oppenheimer" no cenário político atual, nomeadamente num país "atrumpizado", é inegável pelo impacto num tempo em que a ciência é frequentemente atacada e descredibilizada para fins políticos. A perseguição a Oppenheimer revela como o conhecimento pode ser politizado e a verdade distorcída por interesses partidários.
A era McCarthy, retratada no filme, oferece paralelos perturbadores com a atualidade, onde a polarização política pode levar à demonização de oponentes e à supressão do debate racional. A forma como as "ideias de esquerda" de Oppenheimer foram instrumentalizadas para o derrubar ecoa a forma como determinadas narrativas são construídas e usadas para atacar figuras públicas hoje em dia.
No contexto atual, com a ascensão de novas tecnologias e os desafios globais, a reflexão sobre o impacto das inovações e a necessidade de uma consciência ética é mais premente do que nunca. Sobretudo porque a reputação de um homem pode ser sistematicamente destruída por interesses escusos. Num mundo onde as fake news e as campanhas de difamação propagam-se rapidamente, a história de Oppenheimer destaca a vulnerabilidade dos indivíduos face ao poder manipulador.
"Oppenheimer" não é pois um filme sobre o passado; é um espelho que reflete as tensões e os perigos do presente, convidando-nos a refletir sobre o poder, a ciência, a ética e a fragilidade da verdade num mundo cada vez mais complexo.
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