O meu avô João morreu demasiado cedo para que as suas muitas histórias sobre a Flandres em 1918 me pudessem ter aproveitado. Tinha eu então treze anos e só começava a achar aliciantes as histórias que ele parecia desejoso de me contar.
Já João Nuno Pinto teve mais sorte: ouviu o avô Zacarias, que vivera nessa altura no norte de Moçambique. Com base nessas histórias, João Nuno Pinto criou "Mosquito", transportando-nos para a Primeira Guerra Mundial numa vertente pouco explorada: o teatro de operações africano.
A narrativa centra-se num jovem recruta, Zacarias, que, desejoso de lutar pela Pátria, se vê abandonado e perdido na savana moçambicana. A sua jornada é uma verdadeira odisseia, onde a natureza implacável do colonialismo e a brutalidade da guerra se revelam na sua crueza.
Desde a cena de abertura, o filme não deixa dúvidas sobre a desumanidade do que ali se passa. Quando os militares portugueses chegam a África e se deparam com a ausência de um cais, o capitão, de forma chocante, propõe que os soldados montem aos ombros dos carregadores negros, agarrando-se às suas carapinhas. Esta imagem, por si só, é um murro no estômago, expondo a profunda desconsideração pela dignidade humana e o abuso inerente ao sistema colonial.
O ator principal, João Nunes Monteiro, tem um desempenho notável. Ele encarna Zacarias com uma intensidade e fragilidade que nos prendem ao ecrã. Acompanhamos a sua transformação de um jovem idealista a um homem confrontado com os horrores da guerra e a solidão avassaladora. A sua interpretação é tão visceral que nos faz sentir a febre, a fome e o desespero de Zacarias, numa viagem em que a linha entre a sanidade e a loucura se esbate.
A proximidade de Zacarias com o protagonista de "Apocalypse Now", o Capitão Benjamin L. Willard, é inegável, especialmente na forma como ambos são consumidos pela selva e pela insanidade que a guerra provoca. No entanto, a referência a Kurtz de "O Coração das Trevas" (que inspirou "Apocalypse Now") também se faz sentir, pois Zacarias, na busca por um batatal e por respostas, vai-se embrenhando cada vez mais na escuridão de uma realidade que o devora. Tal como Kurtz, a descida à "loucura" é um reflexo do ambiente hostil e desumano em que está inserido.
"Mosquito" é um filme que confronta o passado colonial português, desmistificando qualquer ideia de um "colonialismo bonzinho". É uma obra poderosa e visualmente impactante, que nos faz refletir sobre a guerra, a identidade e a resiliência do espírito humano perante as adversidades mais extremas. É um filme que, tal como o seu protagonista, nos persegue muito depois de a sessão ter terminado.
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