sexta-feira, junho 20, 2025

A Ambivalência de Aranjuez

 

O Concierto de Aranjuez de Joaquín Rodrigo é obra relevante do repertório clássico. A melodia inconfundível e evocativa, especialmente no Adagio, transporta imediatamente o ouvinte para paisagens sonoras de Espanha. No entanto, para além da beleza irrefutável, a obra tem um contraponto complexo: a colaboração de Rodrigo com o regime franquista, uma realidade que ensombra a sua criação.

O Concierto de Aranjuez foi composto em Paris, em 1939, quando a Guerra Civil tinha terminado, e a Segunda Guerra Mundial estava prestes a eclodir. Rodrigo, que era cego desde os três anos, vivia um período de instabilidade, mas encontrou na música um refúgio. A inspiração para a obra veio das memórias dos jardins do Palácio Real de Aranjuez, um local de grande beleza e tranquilidade perto de Madrid. O compositor não pretendia criar uma peça descritiva, mas evocar a "fragrância de magnólias, o canto dos pássaros e o borbulhar das fontes" que associava a Aranjuez. A ideia de um concerto para guitarra e orquestra era, à época, inovadora, elevando a guitarra de instrumento solista folclórico a papel de destaque no universo concertístico.

As três partes do concerto revelam diferentes facetas dessa evocação: no “Allegro con spirito” capta a atmosfera luminosa e alegre dos jardins, com passagens rápidas e um diálogo animado entre a guitarra e a orquestra, reminiscentes da vivacidade da cultura espanhola. No “Adagio”, a parte mais conhecida, há um lamento, talvez pela Espanha ferida pela guerra, ou pela dor pessoal que Rodrigo sentiu com a perda de um filho recém-nascido e a grave doença da esposa Victoria em 1939. A melodia principal, inicialmente apresentada pelo corne inglês, é depois expandida pela guitarra, cria um momento de introspeção e beleza.

Enfim, no “Allegro gentile” há um retorno à luz e à dança graças ao carácter folclórico a celebrar a vida e a tradição espanhola, com um ritmo contagiante a encerrar a obra num tom de otimismo e vitalidade.

A popularidade do Concierto de Aranjuez não passou despercebida ao regime. Franco, ansioso por legitimar o seu governo e apresentar uma imagem de uma Espanha forte e culturalmente rica ao mundo, rapidamente adotou o concerto como um símbolo da "nova Espanha".

A música de Rodrigo, nas raízes profundamente espanholas e no apelo universal, foi usada como ferramenta de propaganda. O regime promoveu ativamente a obra em eventos internacionais e nas estações de rádio controladas pelo Estado, utilizando-a para projetar uma imagem de normalidade, estabilidade e grandeza cultural, desviando a atenção das atrocidades cometidas durante a guerra civil e a repressão pós-guerra. A filiação de Rodrigo ao regime, embora nunca abertamente política nas composições, facilitou essa apropriação. Ele foi agraciado com títulos e honrarias, como o Marquês dos Jardins de Aranjuez, o que cimentou a associação com o poder.

A complexidade reside em separar a obra do criador e do contexto em que foi utilizada. O Concierto de Aranjuez é, em si mesmo, uma peça de arte capaz de tocar as emoções humanas mais profundas, independentemente das intenções políticas daqueles que a usaram. No entanto, o legado é inseparável da sua história. A utilização pelo franquismo serve como um poderoso lembrete de como a arte pode ser instrumentalizada para fins políticos, e como a beleza pode, paradoxalmente, coexistir com realidades sombrias.

A apreciação do Concierto de Aranjuez, com o conhecimento das suas origens e a sua apropriação, convida a uma reflexão mais profunda sobre a relação entre arte, poder e história, enriquecendo a compreensão desta obra intemporal.

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