quarta-feira, junho 25, 2025

"Nove Meses de Inverno e Três de Inferno" de João Pedro Marnoto: um retrato etnográfico

 

O documentário é um testemunho das gentes de Trás-os-Montes e Douro. A realização, fruto de uma década de convívio e confiança com as comunidades, permitiu captar a intimidade e as particularidades da vida rural, os contrastes entre a inocência e a inevitabilidade da morte, e a relação intrínseca com a terra, a fé e o progresso. A crítica, e crucialmente as próprias comunidades retratadas, sublinharam o respeito e a profundidade com que Marnoto abordou essa realidade, afastando qualquer sombra de miserabilismo. Não se trata de uma exposição sensacionalista da pobreza, mas da observação autêntica da dignidade e da resiliência num contexto rural desafiador.

É aqui que o filme se torna um ponto de partida interessante para uma discussão sobre a etnografia. O olhar do etnógrafo carrega, inevitavelmente, a sua bagagem cultural e pode correr o risco de reproduzir preconceitos se não houver rigor e autocrítica. Uma etnografia que se limita a descrever sem questionar as estruturas subjacentes ou naturaliza as desigualdades pode ser conservadora, despolitizando a realidade e ignorando as dinâmicas da luta de classes.

No entanto, o caso de "Nove Meses de Inverno e Três de Inferno" parece ilustrar o lado mais promissor da etnografia: o de uma lupa crítica. Ao dar voz e visibilidade a comunidades frequentemente marginalizadas ou incompreendidas, e ao fazê-lo com respeito, o documentário desafia perceções preconcebidas permitindo-nos ver além do estereótipo, compreendendo as complexas interações entre a cultura, a fé e as condições socioeconómicas.

A questão do papel das crenças religiosas na preservação das desigualdades socioeconómicas é central nesta análise. O documentário, ao focar-se na vida de uma comunidade onde a fé é um pilar, abre caminho para uma reflexão sobre como a religião pode ser ambivalente. Se, por um lado, as crenças podem ser interpretadas de forma a justificar o status quo, incutindo resignação perante as dificuldades e desviando a atenção das causas estruturais da pobreza, por outro, são também uma fonte de conforto, coesão e até resistência.

A etnografia, ao mergulhar nas minúcias da vida religiosa e nas intersecções com as condições materiais, permite uma compreensão mais nuanceada. Em vez de uma condenação simplista, somos levados a questionar: como são vividas estas crenças no dia a dia? Como se articulam com as lutas pela sobrevivência? Serão meras ferramentas de alienação, ou podem ser um refúgio e uma força mobilizadora?

Em suma, "Nove Meses de Inverno e Três de Inferno" serve como ponto de partida para refletir sobre como um documentário etnográfico, quando bem executado, pode transcender a mera observação tornando-se num veículo para aprofundar a compreensão das complexas relações entre cultura, economia e fé, sem cair em generalizações. 

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