segunda-feira, junho 30, 2025

A Sinfonia n.º 4 em Mi menor, Op. 98, de Johannes Brahms: perante as mudanças conjunturais

 

Esta foi a última das sinfonias do compositor e há quem a considere uma das obras canónicas do repertório  romântico.

Brahms compô-la no verão de 1884 e 1885, quando passava férias em Mürzzuschlag, uma cidade montanhosa na Áustria. Um ano antes ele concluíra a Sinfonia nº 3, mas quis que esta fosse muito diferente dessa obra anterior, mais sombria, se não mesmo acentuadamente trágica.

Autocrítico e ansioso quanto à receção das novas obras, Brahms tocou uma versão desta para dois pianos tendo por seleto público um pequeno grupo de amigos, entre os quais o crítico Eduard Hanslick e o cirurgião Theodor Billroth.

A reação inicial de alguns desses amigos foi de perplexidade, mas Hanslick acabou por elogiá-la efusivamente. A estreia oficial, com Brahms a dirigir a Orquestra da Corte de Meiningen, ocorreu a 25 de outubro de 1885 e foi um grande sucesso.

Acredita-se que Brahms estava a refletir sobre a sua própria mortalidade e o futuro da música no final do século XIX, dadas as grandes mudanças então em curso. O uso da passacaglia no último andamento sugere uma ligação ao passado e um profundo respeito pelas tradições musicais, em particular Bach, cujo tema de uma cantata serviu de base para esse movimento. 

domingo, junho 29, 2025

"O Mal Amado" de Fernando Matos Silva: a última proibição

 

"O Mal Amado” foi o último filme integralmente proibido pela censura fascista em Portugal. Uma obra que explorava o desencanto da juventude e as tensões sociais do pré-25 de Abril de 1974 não poderia ser aceite por quem procurava controlar as narrativas e a perceção da realidade.

O filme foi apresentado à censura em fevereiro de 1974, e a decisão não foi surpresa. As autoridades consideraram-no "negativo" e "imoral", termos que a censura frequentemente usava para descartar qualquer obra que ousasse questionar as fissuras da sociedade. O retrato das inquietações estudantis, da frustração pequeno-burguesa e, implicitamente, das consequências da Guerra Colonial (através da personagem de Inês), eram temas demasiado "sensíveis" para um regime que se desmoronava, mas ainda resistia através da repressão. A proibição de "O Mal Amado" testemunhou  a paranoia e o controlo férreo que o Estado Novo exercia sobre a cultura e a liberdade de expressão até aos seus últimos dias.

A Revolução dos Cravos mudou radicalmente o destino do filme. De um momento para o outro, "O Mal Amado" passou de obra proscrita a um símbolo da recém-conquistada liberdade. A estreia, apenas um mês depois, em maio, foi um marco cultural e político inesquecível.

Lembro-me perfeitamente de o ter visto no verão em que fazia tropa no Alfeite. Naquele contexto "O Mal Amado" foi um sopro de ar fresco, uma epifania. O filme, que finalmente podia ser exibido sem os cortes da censura, trazia ao grande ecrã as angústias que tão bem compreendia – o desencanto, as pressões familiares, a sombra da guerra colonial, e a busca por um sentido num país asfixiado.

O que realmente me marcou foi a sensação de que, na nova realidade todos aqueles constrangimentos, que o personagem principal do filme sentia, pareciam ter solução. A asfixia dava lugar à esperança, a opressão à possibilidade. A liberdade de expressão, espelhada naquele filme finalmente sem cortes, era um prelúdio da liberdade que sentíamos estar a ganhar na nossa própria vida. "O Mal Amado" não era só um filme; era um espelho, e ao mesmo tempo, uma janela para um futuro onde as nossas próprias inquietações poderiam encontrar um caminho.

"O Mal Amado" transcendeu, pois, o estatuto de mero filme para se tornar um ícone. A sua trajetória espelha a própria história de Portugal naqueles dias decisivos, marcando a transição de uma era de opressão para uma de liberdade e abertura cultural. 

sexta-feira, junho 27, 2025

"Twin Peaks: Fire Walk With Me - The Missing Pieces" de David Lynch: um deleite caótico

 

"Twin Peaks: Fire Walk With Me - The Missing Pieces" não é para qualquer um. É uma daquelas obras que só fazem sentido para quem já mergulhou de cabeça no universo peculiar de David Lynch, especialmente na saga de "Twin Peaks". Para um novato, seria como tentar decifrar um sonho febril sem o dicionário dos símbolos. Mas para os iniciados, é um verdadeiro presente.

Este não é um filme no sentido tradicional; é uma janela extra, um suplemento vital para quem já se deixou envolver pela história trágica de Laura Palmer e pelos mistérios de Twin Peaks. As cenas que foram resgatadas aqui, e não viram a luz do dia na versão original de "Fire Walk With Me", são peças que se encaixam e aprofundam a compreensão de um mundo já de si complexo. Vemos mais do FBI, mais das vidas marginais que orbitam Laura, e até mais daquele lado onírico e perturbador que Lynch domina tão bem.

E é precisamente aqui que reside o maior charme – e o maior desafio – do filme: o lado absurdo. Há momentos em "The Missing Pieces" que são puro Lynch: diálogos desconexos, personagens com comportamentos inexplicáveis, e situações que desafiam qualquer lógica cartesiana. No entanto, o génio está em como esse absurdo tem a sua gramática interna, a sua lógica lynchiana. Não é um absurdo gratuito; é um espelho distorcido da realidade que reflete as angústias, os medos e a hipocrisia de um modo que a linearidade convencional jamais conseguiria. É como estar num pesadelo lúcido onde tudo é ilógico, mas as sensações e as emoções são intensamente reais.

Para quem conhece os segredos da Loja Negra e da Loja Branca, para quem já se familiarizou com os duplos e os mistérios da floresta, "The Missing Pieces" é um complemento essencial. Ele não apenas preenche lacunas narrativas, mas intensifica a atmosfera de estranheza e melancolia que define "Twin Peaks". É uma experiência visceral, por vezes desconfortável, mas sempre fascinante, que só pode ser plenamente apreciada por aqueles que já estão dispostos a abandonar a lógica e entregar-se ao surreal. E é exatamente por isso que me agrada. 

quarta-feira, junho 25, 2025

"Nove Meses de Inverno e Três de Inferno" de João Pedro Marnoto: um retrato etnográfico

 

O documentário é um testemunho das gentes de Trás-os-Montes e Douro. A realização, fruto de uma década de convívio e confiança com as comunidades, permitiu captar a intimidade e as particularidades da vida rural, os contrastes entre a inocência e a inevitabilidade da morte, e a relação intrínseca com a terra, a fé e o progresso. A crítica, e crucialmente as próprias comunidades retratadas, sublinharam o respeito e a profundidade com que Marnoto abordou essa realidade, afastando qualquer sombra de miserabilismo. Não se trata de uma exposição sensacionalista da pobreza, mas da observação autêntica da dignidade e da resiliência num contexto rural desafiador.

É aqui que o filme se torna um ponto de partida interessante para uma discussão sobre a etnografia. O olhar do etnógrafo carrega, inevitavelmente, a sua bagagem cultural e pode correr o risco de reproduzir preconceitos se não houver rigor e autocrítica. Uma etnografia que se limita a descrever sem questionar as estruturas subjacentes ou naturaliza as desigualdades pode ser conservadora, despolitizando a realidade e ignorando as dinâmicas da luta de classes.

No entanto, o caso de "Nove Meses de Inverno e Três de Inferno" parece ilustrar o lado mais promissor da etnografia: o de uma lupa crítica. Ao dar voz e visibilidade a comunidades frequentemente marginalizadas ou incompreendidas, e ao fazê-lo com respeito, o documentário desafia perceções preconcebidas permitindo-nos ver além do estereótipo, compreendendo as complexas interações entre a cultura, a fé e as condições socioeconómicas.

A questão do papel das crenças religiosas na preservação das desigualdades socioeconómicas é central nesta análise. O documentário, ao focar-se na vida de uma comunidade onde a fé é um pilar, abre caminho para uma reflexão sobre como a religião pode ser ambivalente. Se, por um lado, as crenças podem ser interpretadas de forma a justificar o status quo, incutindo resignação perante as dificuldades e desviando a atenção das causas estruturais da pobreza, por outro, são também uma fonte de conforto, coesão e até resistência.

A etnografia, ao mergulhar nas minúcias da vida religiosa e nas intersecções com as condições materiais, permite uma compreensão mais nuanceada. Em vez de uma condenação simplista, somos levados a questionar: como são vividas estas crenças no dia a dia? Como se articulam com as lutas pela sobrevivência? Serão meras ferramentas de alienação, ou podem ser um refúgio e uma força mobilizadora?

Em suma, "Nove Meses de Inverno e Três de Inferno" serve como ponto de partida para refletir sobre como um documentário etnográfico, quando bem executado, pode transcender a mera observação tornando-se num veículo para aprofundar a compreensão das complexas relações entre cultura, economia e fé, sem cair em generalizações. 

Rumo à Felicidade” de Ingmar Bergman: a melodia da ambição

 

Ao abordarem-se os realizadores que diluíram a fronteira entre a vida e a arte, o nome de Jean-Luc Godard surge de imediato por ter na obra um espelho das suas relações, pensamentos e contradições existenciais. No entanto, já antes, Ingmar Bergman trilhava esse caminho, vertendo a própria experiência e angústias para a tela.

"Rumo à Felicidade" (Till glädje), de 1950, é um exemplo dessa simbiose, um filme sobre a insatisfação perante o fracasso das ambições e a cegueira em relação à felicidade que o amor pode oferecer.

O "síndrome do sapateiro apostado em tocar rabecão" – a persistência teimosa em algo para o qual não se tem aptidão ou, neste caso, o sucesso desejado – encontra em Stig, o violinista protagonista, a personificação dolorosa. Ele é um homem consumido pela ambição de ser um solista de renome, um virtuoso que arranque aplausos e admiração. Contraria-o a realidade do seu talento, que, embora competente, não atinge o brilho que idealiza. Essa frustração constante torna-o amargo, egoísta e incapaz de apreciar o que tem.

É aqui que entra Marta, a esposa, uma violinista que partilha a paixão pela música, mas possui uma perspetiva de vida pragmática e afetiva. Ela configura a alternativa de realização pessoal no amor, na construção de uma vida em família, oferecendo a Stig uma âncora, um refúgio, uma fonte de alegria genuína.

O ego e obsessão pelo sucesso individual impedem-no de ver a profundidade e a beleza do amor que Marta lhe oferece, focado que está no palco sem ouvir a melodia tangida no seu desprezado lar.

Nesta altura Bergman era um jovem realizador a lutar com as próprias inseguranças e ambições. As dificuldades no casamento e a pressão para se afirmar artisticamente eram realidades bem suas conhecidas. "Rumo à Felicidade" traz  reflexões sobre os sacrifícios que a arte exige, e o perigo de perder-se na busca de um ideal inatingível, negligenciando a verdadeira felicidade inerente às relações humanas.

O filme lembra que a vida não é só uma sucessão de triunfos profissionais. A insensatez de Stig, ao desprezar a segurança e o afeto que lhe são dados, culmina numa tragédia que o força a encarar as consequências das suas escolhas. No final, a "alegria" do título original adquire um tom irónico, ao enfatizar a capacidade de valorizar o amor e as oportunidades simples que a vida nos oferece. É uma melodia amarga, mas essencial, sobre o preço da ambição cega e a beleza do desvalorizado amor.

terça-feira, junho 24, 2025

"The French Connection" de William Friedkin: ainda faz sentido vê-lo cinco décadas depois?

 

Lançado em 1971, "The French Connection" ("Os Incorruptíveis Contra a Droga") é um clássico e uma experiência cinéfila que continua a provocar reflexão. Num tempo saturado de filmes de ação, ainda faz sentido dedicarmos tempo a esta obra de cinco décadas atrás? A resposta é sim, e por várias razões.

William Friedkin rompeu com as convenções da época ao apresentar uma Nova York suja, caótica e perigosa, longe do glamour muitas vezes retratado no cinema. A abordagem quase documental, com câmaras que pareciam captar cenas aleatórias em vez de perfeitamente coreografadas, confere autenticidade ao filme. Ademais, não há heróis idealizados; há detetives obcecados e, por vezes, moralmente ambíguos, como Jimmy "Popeye" Doyle (Gene Hackman).

Essa crueza e realismo ainda são um contraponto fascinante a muitos filmes contemporâneos que, por vezes, priorizam o espetáculo em detrimento da profundidade.

Popeye Doyle é um anti-herói singular da história do cinema. Com o seu racismo velado, métodos questionáveis e uma obstinação quase patológica, é a personificação da imperfeição humana em busca de justiça. A sua forma de agir é uma análise da dedicação e dos sacrifícios pessoais no combate ao crime. Numa era que aprecia protagonistas com camadas e dilemas morais, a figura de Doyle permanece incrivelmente relevante, desafiando o espectador a confrontar o que realmente significa ser um "herói".

É impossível falar de "The French Connection" sem mencionar a cena da perseguição de carro e comboio. Filmada sem auxílio de efeitos digitais, é um testemunho do talento de Friedkin e da audácia da sua equipa técnica. A adrenalina é real, o perigo é tangível, e o impacto dessa sequência ressoa como padrão para cenas de ação. Ver essa sequência é revisitar uma aula de como construir tensão e ritmo, algo que transcende épocas e tecnologias.

"The French Connection" conquistou o Óscar de Melhor Filme, mas também redefiniu o género, abrindo caminho para uma fase de filmes mais sombrios e realistas, influenciando gerações de cineastas e estabelecendo um novo paradigma para a representação do trabalho policial. Vê-lo corresponde a  depararmo-nos com um pedaço fundamental da história do cinema que continua a ser estudado e imitado.

Faz todo o sentido ver "The French Connection" em 2025, porque oferece uma experiência intensa e autêntica, com atuações competentes e uma narrativa atemporal que explora os lados sombrios da lei e da ordem. É um filme que lembra que a grandeza de uma obra não se mede pela idade, mas pela capacidade de ainda cativar e fazer pensar. 

segunda-feira, junho 23, 2025

Chungking Express de Wong Kar-wai: Um Elo Íntimo

 

A primeira vez que aterrei em Hong Kong foi no antigo aeroporto de Kai Tak e, felizmente, ainda não sucedera o ataque às Torres Gémeas de Manhattan. Se aquela chegada no 747 da Lufthansa infundiu-me o respeito ao vê-lo a ladear, se não mesmo a passar entre arranha-céus, não sei se não teria sentido medo profundo ao ver-me numa cena semelhante à dos passageiros dos voos depois utilizados nesse 11 de setembro.

“Chungking Express” capta a essência de Hong Kong de uma forma que ressoa com as experiências pessoais de quem visita a cidade. A confusão e a falta de espaço para o sossego, logo percecionadas na chegada a esse antigo aeroporto, é uma imagem vívida que o filme de Wong Kar-wai reproduz fielmente.

A ligação entre este título e a biografia do próprio realizador é evidente. O filme, lançado em 1994, é uma ode à cidade que moldou Wong Kar-wai que, nascido em Xangai, mudara-se para Hong Kong aos cinco anos, crescendo na efervescência e contradições da metrópole. A obra explora a melancolia, a solidão e a busca de elos nos ambientes urbanos, e “Chungking Express” é um exemplo paradigmático disso.

A cidade não é apenas um cenário porque, de muitas maneiras, assume a condição de personagem vital. A claustrofobia dos apartamentos minúsculos, a agitação incessante das ruas, ou os restaurantes e bares vibrantes refletem a experiência de Wong Kar-wai em viver num espaço superlotado e em constante movimento.

As narrativas fragmentadas dos dois segmentos do filme espelham a natureza caótica e imprevisível, onde as vidas cruzam-se e separam-se num piscar de olhos. A sensação de confusão e turbulência é acentuada pela rapidez da montagem, características de Wong.

Os temas da solidão, amor não correspondido e busca por cumplicidade humana no anonimato da cidade são recorrentes na obra de Wong Kar-wai e também em “Chungking Express”. Os personagens, sejam polícias, empregadas de cafés ou traficantes, vivem isolados, mas anseiam libertar-se da sensação de asfixia. O filme capta a intimidade que tanto pode surgir no meio de tanta gente, como a profunda solidão sentida entre as multidões.

Aterrar em Hong Kong, voando baixo entre os arranha-céus, era experiência única e perigosa, que simbolizava a própria audácia e singularidade da cidade. Essa chegada impactante e inesquecível ecoa na forma como o filme imerge o espetador no ritmo frenético e na atmosfera singular de Hong Kong. Não havia espaço para o sossego nem na chegada, nem na vida quotidiana, e o filme capta essa intensidade.

Na essência, “Chungking Express” é o reflexo íntimo da relação de Wong Kar-wai com Hong Kong. É uma obra que não apenas a retrata, mas sente-a e experimenta-a, transmitindo a singular magia de um espaço único.

domingo, junho 22, 2025

"A Pedra Sonha dar Flor" de Rodrigo Areias: Quando a Esperança se Ausenta da Tela

 

Estamos habituados a sentir um leque imenso de emoções na sala escura. Choramos, rimos, vibramos com os heróis e torcemos pelos finais felizes. Mas, e quando um filme nos recusa tudo isso? E se, em vez de esperança, nos oferece uma jornada pela mais profunda escuridão, sem promessa de luz ao fundo do túnel? É precisamente essa a proposta de "A Pedra Sonha dar Flor”, e é nessa ausência que reside a sua intrigante força.

Inspirado no universo soturno de Raul Brandão, Areias leva-nos à Vila Húmus, um lugar que exala decadência e desolação. Ali, acompanhamos o escritor K. Maurício, aprisionado nas teias da sua própria ficção, e Pita, uma figura que se deleita em orquestrar a miséria alheia. Crimes, alucinações e uma atmosfera gótica avassaladora pintam um quadro onde a redenção parece uma piada cruel. É um filme "sem esperança", mas essa característica, que à primeira vista poderia afastar, é o que o torna tão singular e poderoso.

A magia de "A Pedra Sonha dar Flor" reside na capacidade de gerar um efeito ambivalente em quem o vê. Ao recusar os caminhos fáceis do conforto e do otimismo, o filme empurra-nos para um desconforto visceral. E é nesse desconforto que se esconde uma oportunidade rara de reflexão. Somos obrigados a confrontar temas universais como a dor, a crueldade e o sentido – ou a falta dele – a existência. O filme não dá respostas, mas lança-nos perguntas que, por vezes, preferimos não fazer.

Para alguns, essa imersão na escuridão pode ser até catártica. É como se, ao testemunhar a angústia e o desespero dos personagens, pudéssemos libertar as próprias tensões ou processar emoções complexas de forma segura. A beleza aqui não está na alegria, mas na honestidade brutal da representação, que ecoa na nossa própria humanidade.

E há uma ironia fascinante na experiência de ver um filme tão desprovido de esperança: ela pode levar-nos a valorizar a nossa própria realidade. Depois de mergulhar num universo onde a luz é uma miragem, os pequenos vislumbres de alegria, as relações significativas e as possibilidades de um futuro melhor ganham um brilho renovado. "A Pedra Sonha dar Flor" não oferece esperança diretamente, mas, por contraste, pode fazer-nos reconhecer e apreciar ainda mais a que já possuímos.

Rodrigo Areias entrega-nos uma obra que desafia as convenções, exigindo mais do que a mera passividade do espectador. É um filme que, ao recusar-se a ser um bálsamo, convida-nos a uma profunda introspeção sobre o lado sombrio da vida, mostrando que mesmo na ausência da esperança, pode haver uma beleza crua e uma poderosa provocação artística. 

sábado, junho 21, 2025

"O Tigre e o Dragão": Para Lá das Artes Marciais

 

"O Tigre e o Dragão" (2000), de Ang Lee, transcende o género das artes marciais para oferecer uma experiência cinematográfica rica em significado cultural e impacto emocional. Mesmo para quem não é um entusiasta das lutas coreografadas, o filme revela-se uma produção curiosa pela beleza visual, profundidade temática e a forma como explora a condição humana.

A história, ambientada na China do século XIX, centra-se na lendária espada "Espada do Destino", na posse do mestre espadachim Li Mu Bai e da sua amiga e confidente, a guerreira Yu Shu Lien. O roubo da espada por Jen Yu, uma jovem nobre com talentos marciais ocultos, desencadeia uma jornada de perseguição e descoberta. Contudo, a trama vai muito além da simples busca por um objeto perdido. É uma exploração de temas universais como o amor proibido, a honra, o dever, a liberdade e a repressão.

Para o espectador que não domina a cultura chinesa, o filme funciona como uma janela. As coreografias de luta, desafiadoras da gravidade, são mais do que sequências de ação; são uma expressão artística da tradição wuxia. Cada movimento, cada voo gracioso, é um espetáculo de equilíbrio e disciplina que reflete a destreza física e a ligação com a natureza e a filosofia oriental. As artes marciais elevam-se a uma forma de dança acrobática.

Além disso, "O Tigre e o Dragão" reflete a luta dos indivíduos contra sistemas opressores. Jen Yu, aprisionada pelas expectativas sociais e pela condição feminina na época, anseia por liberdade e um propósito que vá além do casamento arranjado. A rebeldia e busca por autonomia ecoam nas batalhas dos explorados contra exploradores e dos humilhados contra assediadores, temas universais e atemporais. A sua jornada é um grito pela libertação pessoal, uma busca por um lugar no mundo onde possa ser verdadeiramente ela mesma, sem as amarras da tradição ou da sociedade.

A relevância do filme na altura em que foi feito, em 2000, foi considerável. "O Tigre e o Dragão" conquistou quatro Óscares (incluindo Melhor Filme Estrangeiro) e abriu as portas do cinema ocidental para o género wuxia, mostrando que os filmes de artes marciais poderiam também ser obras com profundidade emocional e cultural. Ang Lee conseguiu criar uma ponte entre culturas, apresentando ao mundo uma história intrinsecamente chinesa, mas cujos sentimentos e conflitos são facilmente reconhecíveis por qualquer pessoa, em qualquer canto do planeta. O filme demonstrou a capacidade do cinema em transcender barreiras linguísticas e culturais, atraindo pelas suas narrativas impactantes e beleza estética. 

sexta-feira, junho 20, 2025

"Oppenheimer" de Christopher Nolan: Um Retrato Íntimo

 

É compreensível o fascínio por J. Robert Oppenheimer, uma figura tão complexa e contraditória da História. O seu percurso, desde a liderança do Projeto Manhattan até à posterior perseguição política, é um testemunho do peso da consciência e dos perigos da histeria ideológica.

De início era mitigado o meu interesse pelo filme, partindo do pressuposto de já tudo saber sobre o aí abordado, mas o filme consegue ir além da mera biografia.

"Oppenheimer" não é apenas uma reconstituição factual da vida do físico, mas uma imersão profunda na sua psique e nas forças políticas que o moldaram e, eventualmente, o esmagaram. Nolan opta por uma estrutura narrativa não linear, alternando entre três linhas temporais: os anos que antecederam a criação da bomba atómica, o período do Projeto Manhattan e, crucialmente, os interrogatórios a que Oppenheimer foi submetido no pós-guerra. Esta abordagem permite ao espectador não só seguir os eventos, mas também sentir o peso crescente das decisões e as ramificações morais.

Aborda-se a dualidade inerente à figura de Oppenheimer: o génio científico que alcançou o impensável, e o homem atormentado pela responsabilidade das suas criações. Ele explora a contradição entre a ambição científica e a ética moral: o fascínio pela descoberta e o imperativo de desenvolver a bomba antes dos nazis colidem com a crescente perceção das consequências catastróficas. Nolan não suaviza o impacto das bombas, mas foca-se na tortura interna de Oppenheimer face ao poder que ele ajudou a libertar.

Há também o contraponto entre as ligações com as forças politicas de esquerda e a caça às bruxas.  A simpatia de Oppenheimer por comunistas confessos, longe de ser um segredo, tornou-se a arma perfeita para os seus detratores durante a era McCarthy. O filme expõe a crueldade e a injustiça da "caça às bruxas" e como a histeria anticomunista corroeu a liberdade individual e a verdade.

Há também o lado mais grotesco, o da mesquinhez politica, senão mesmo da mera inveja. Um dos pontos fulcrais do filme é o papel de Lewis Strauss, o político que orquestrou a queda de Oppenheimer. Nolan retrata Strauss não como um vilão unidimensional, mas como um homem impulsionado pela inveja, pela mágoa e por um profundo ressentimento em relação ao intelecto e carisma de Oppenheimer. É neste duelo entre um intelectual e um político, que a relevância do filme se aprofunda.

Nolan constrói uma narrativa ao mesmo tempo íntima e épica. Cillian Murphy é excelente enquanto Oppenheimer, capturando-lhe a inteligência, o conflito interno e a crescente fragilidade. O elenco de apoio, incluindo Robert Downey Jr. na pele de Lewis Strauss, é igualmente brilhante.

A favor do filme também a intensidade das sequências que retratam o teste Trinity, comunicando o poder aterrorizante da bomba sem a necessidade de mostrar explicitamente as suas vítimas. O design de som e a banda sonora contribuem para a atmosfera de tensão e presságio.

Por outro lado a alternância entre o preto e branco (a perspetiva de Strauss) e a cor (a perspetiva de Oppenheimer) é um artifício inteligente que não só diferencia as linhas temporais, mas também sugere a objetividade e a subjetividade das memórias e acusações.

A relevância de "Oppenheimer" no cenário político atual, nomeadamente num país "atrumpizado", é inegável pelo impacto num tempo em que a ciência é frequentemente atacada e descredibilizada para fins políticos. A perseguição a Oppenheimer revela como o conhecimento pode ser politizado e a verdade distorcída por interesses partidários.

A era McCarthy, retratada no filme, oferece paralelos perturbadores com a atualidade, onde a polarização política pode levar à demonização de oponentes e à supressão do debate racional. A forma como as "ideias de esquerda" de Oppenheimer foram instrumentalizadas para o derrubar ecoa a forma como determinadas narrativas são construídas e usadas para atacar figuras públicas hoje em dia.

No contexto atual, com a ascensão de novas tecnologias e os desafios globais, a reflexão sobre o impacto das inovações e a necessidade de uma consciência ética é mais premente do que nunca. Sobretudo porque a reputação de um homem pode ser sistematicamente destruída por interesses escusos. Num mundo onde as fake news e as campanhas de difamação propagam-se rapidamente, a história de Oppenheimer destaca a vulnerabilidade dos indivíduos face ao poder manipulador.

"Oppenheimer" não é pois um filme sobre o passado; é um espelho que reflete as tensões e os perigos do presente, convidando-nos a refletir sobre o poder, a ciência, a ética e a fragilidade da verdade num mundo cada vez mais complexo. 

A Ambivalência de Aranjuez

 

O Concierto de Aranjuez de Joaquín Rodrigo é obra relevante do repertório clássico. A melodia inconfundível e evocativa, especialmente no Adagio, transporta imediatamente o ouvinte para paisagens sonoras de Espanha. No entanto, para além da beleza irrefutável, a obra tem um contraponto complexo: a colaboração de Rodrigo com o regime franquista, uma realidade que ensombra a sua criação.

O Concierto de Aranjuez foi composto em Paris, em 1939, quando a Guerra Civil tinha terminado, e a Segunda Guerra Mundial estava prestes a eclodir. Rodrigo, que era cego desde os três anos, vivia um período de instabilidade, mas encontrou na música um refúgio. A inspiração para a obra veio das memórias dos jardins do Palácio Real de Aranjuez, um local de grande beleza e tranquilidade perto de Madrid. O compositor não pretendia criar uma peça descritiva, mas evocar a "fragrância de magnólias, o canto dos pássaros e o borbulhar das fontes" que associava a Aranjuez. A ideia de um concerto para guitarra e orquestra era, à época, inovadora, elevando a guitarra de instrumento solista folclórico a papel de destaque no universo concertístico.

As três partes do concerto revelam diferentes facetas dessa evocação: no “Allegro con spirito” capta a atmosfera luminosa e alegre dos jardins, com passagens rápidas e um diálogo animado entre a guitarra e a orquestra, reminiscentes da vivacidade da cultura espanhola. No “Adagio”, a parte mais conhecida, há um lamento, talvez pela Espanha ferida pela guerra, ou pela dor pessoal que Rodrigo sentiu com a perda de um filho recém-nascido e a grave doença da esposa Victoria em 1939. A melodia principal, inicialmente apresentada pelo corne inglês, é depois expandida pela guitarra, cria um momento de introspeção e beleza.

Enfim, no “Allegro gentile” há um retorno à luz e à dança graças ao carácter folclórico a celebrar a vida e a tradição espanhola, com um ritmo contagiante a encerrar a obra num tom de otimismo e vitalidade.

A popularidade do Concierto de Aranjuez não passou despercebida ao regime. Franco, ansioso por legitimar o seu governo e apresentar uma imagem de uma Espanha forte e culturalmente rica ao mundo, rapidamente adotou o concerto como um símbolo da "nova Espanha".

A música de Rodrigo, nas raízes profundamente espanholas e no apelo universal, foi usada como ferramenta de propaganda. O regime promoveu ativamente a obra em eventos internacionais e nas estações de rádio controladas pelo Estado, utilizando-a para projetar uma imagem de normalidade, estabilidade e grandeza cultural, desviando a atenção das atrocidades cometidas durante a guerra civil e a repressão pós-guerra. A filiação de Rodrigo ao regime, embora nunca abertamente política nas composições, facilitou essa apropriação. Ele foi agraciado com títulos e honrarias, como o Marquês dos Jardins de Aranjuez, o que cimentou a associação com o poder.

A complexidade reside em separar a obra do criador e do contexto em que foi utilizada. O Concierto de Aranjuez é, em si mesmo, uma peça de arte capaz de tocar as emoções humanas mais profundas, independentemente das intenções políticas daqueles que a usaram. No entanto, o legado é inseparável da sua história. A utilização pelo franquismo serve como um poderoso lembrete de como a arte pode ser instrumentalizada para fins políticos, e como a beleza pode, paradoxalmente, coexistir com realidades sombrias.

A apreciação do Concierto de Aranjuez, com o conhecimento das suas origens e a sua apropriação, convida a uma reflexão mais profunda sobre a relação entre arte, poder e história, enriquecendo a compreensão desta obra intemporal.