domingo, junho 15, 2025

Na hora entre cão e lobo

 

É dia de lembrar o aniversário de Edvard Grieg, não apenas uma data no calendário musical, mas sobretudo pretexto para um dos momentos mágicos partilhados com a Elza neste meio século de cumplicidade amorosa.

Era a noite da nossa chegada a Bergen. No "Funchal", estava obrigado a sucessivas idas e vindas da casa das máquinas para garantir as manobras do navio nas zonas mais estreitas do fiorde. Entre uma e outra, regressava ao camarote, onde a Elza me esperava. Sentávamo-nos à secretária encostada às vigias, observando a margem desfilar naquela luz peculiar que os franceses tão bem descrevem como "entre cão e lobo" – um crepúsculo que nunca se transformava verdadeiramente em escuridão total.

A filha, com meia dúzia de anos, dormia profundamente na cama, alheia à beleza envolvente. Nós, de mãos dadas, falávamos baixinho, quase sussurrando, para não perturbar o sono da nossa menina. E, nesse silêncio cúmplice, pusemos o "Amanhecer" da suite "Peer Gynt" de Grieg. A melodia preencheu o pequeno espaço, misturando-se com a paisagem nórdica que se desenrolava lá fora.

Se a Ilsa Lund e o Rick Blaine teriam sempre Paris, nós teremos sempre os fiordes noruegueses e aquela melodia,  momento dos mais belos que vivemos.

Oxalá que lá nesse outro lado onde a Elza se ausenta, permaneçam esses momentos. Que a memória daquela noite  e a música de Grieg possam atenuar, mesmo que por instantes, os constrangimentos da terrível doença que ela não merecia sofrer. Que esses fragmentos de felicidade e amor continuem a brilhar, onde quer que esteja.

Entre a Partida e a Permanência

 

Impacto significativo o das páginas de "Educação da Tristeza" de Valter Hugo Mãe na sensibilidade com que o autor aborda a ausência: "As pessoas que perdemos somam. Somam à ausência mas são nosso património mais delicado, um reduto de fortuna e saudade que detemos mais dedicadamente do que ouro."

Esta passagem não poderia ser mais pertinente para o que sinto. A Elza, mesmo com a doença a afastá-la desta realidade, continua a somar. Permanece o património cúmplice, construído nas partilhas, risos e talvez algumas lágrimas, mas sempre com amor.

A grande verdade, e a esperança que o livro traz, reside na ideia de que a perda de alguém que se amou profundamente não é apenas sinónimo de tristeza. Valter Hugo Mãe sugere haver mais: não se trata de apagar a dor, mas de a moldar, de a fazer coexistir com a riqueza da recordação. A tristeza, "não desaparece, ela torna-se respeitosa com a necessidade de sobreviver, de continuar a lembrar, de continuar a amar".

É isso que anseio: que a memória da Elza, quando o momento chegar, seja preenchida pela alegria da recordação. Que as infinitas coisas boas que vivemos juntos se sobreponham ao vazio da ausência. Que a sua pessoa, cheia de vida e de tudo o que nela se me tornou tão especial, prevaleça.

"Educação da Tristeza" sugere que a memória é um lugar onde o amor não morre, apenas se transforma. É um convite a abraçar a plenitude do que foi vivido, permitindo que a alegria das lembranças mais queridas seja farol na escuridão do luto. Mesmo na tristeza, o livro funciona como guia a iluminar o caminho de celebração do amor que sempre nos unirá.

quinta-feira, junho 12, 2025

A paranoia segundo Simenon

 

"As Janelas Defronte" de Georges Simenon é uma obra característica do autor, embora não das mais impactantes. A capacidade de Simenon em criar atmosferas opressivas é notória, e a presente narrativa, embora de leitura fluida e acessível, carece da intensidade presente noutros títulos.

O cônsul turco Adil Bey imerge na paranoia da União Soviética no final da década de 1920. A desumanização do indivíduo num ambiente de vigilância constante é eficaz, com as "janelas defronte" a funcionarem como metáfora da ausência de privacidade e da opressão sistémica. A atmosfera sufocante de Batúmi, a desconfiança interpessoal e a solidão do protagonista são elementos bem delineados. Para leitores que apreciam estudos psicológicos em contextos de tensão, a obra cumpre a função.

Contudo, a experiência de leitura desta obra não atingiu o mesmo patamar de outras produções do autor. Títulos como "A Neve Estava Suja", por exemplo, provocaram uma ressonância mais profunda devido à sua crueza e exploração intransigente da degradação humana. A intensidade emocional e o confronto com dilemas morais, patentes nessa obra, não se replicam com a mesma força em "As Janelas Defronte", que tem menor imersão emocional.

Em suma, "As Janelas Defronte" constitui uma leitura recomendável para contactar a obra de Simenon, apreciando a construção de ambientes e perfis psicológicos. Não obstante, para quem conhece a profundidade e o impacto de outras criações do autor, esta é obra menos distintiva, na bibliografia do autor. 

quarta-feira, junho 11, 2025

"O País dos Outros" – Os Campos e os Citadinos

 

Em o "O País dos Outros" Leïla Slimani faz-nos sentir a complexidade de viver numa terra que não sentimos nossa. Foca-se na protagonista, Mathilde, claro, mas também na sensação dos colonos franceses perante um Marrocos à beira da independência, um Marrocos que, de repente, passa a ser "o país dos outros".

Slimani mostra que o sentimento de não-pertença vai muito além de quem vem de fora. Amine, o marido da Mathilde, valoriza sobretudo os campos: a terra é tudo – o sustento, a labuta diária, a identidade mais profunda.

Contudo, para os camponeses marroquinos, como o próprio Amine e sua família, há uma outra camada de estranheza. Eles vivem, a seu modo, no "país dos citadinos". Longe do ritmo e das oportunidades das grandes cidades como Rabat ou Casablanca, a vida no campo é dureza, é tradição forte e sacrifício constante. As conveniências e mentalidades urbanas são um mundo à parte, um "país" que lhes parece distante, quase inacessível.

Mathilde, embora francesa, sente essa dicotomia na pele quando se isola na fazenda, vivendo a rudeza do rural face ao urbano de onde veio.

Ficam expostas as fraturas internas de uma nação: a independência política, por si só, não apaga as disparidades sociais e culturais. A terra que para os colonos era poder e agora é perda, para os camponeses é uma luta diária, e para eles, paradoxalmente, um lugar onde as regras são ditadas por um "país" diferente, o dos citadinos.

sexta-feira, junho 06, 2025

Mosquito: Uma Odisseia na Grande Guerra

 

O meu avô João morreu demasiado cedo para que as suas muitas histórias sobre a Flandres em 1918 me pudessem ter aproveitado. Tinha eu então treze anos e só começava a achar aliciantes as histórias que ele parecia desejoso de me contar.

Já João Nuno Pinto teve mais sorte: ouviu o avô Zacarias, que vivera nessa altura no norte de Moçambique. Com base nessas histórias, João Nuno Pinto criou "Mosquito", transportando-nos para a Primeira Guerra Mundial numa vertente pouco explorada: o teatro de operações africano.

A narrativa centra-se num jovem recruta, Zacarias, que, desejoso de lutar pela Pátria, se vê abandonado e perdido na savana moçambicana. A sua jornada é uma verdadeira odisseia, onde a natureza implacável do colonialismo e a brutalidade da guerra se revelam na sua crueza.

Desde a cena de abertura, o filme não deixa dúvidas sobre a desumanidade do que ali se passa. Quando os militares portugueses chegam a África e se deparam com a ausência de um cais, o capitão, de forma chocante, propõe que os soldados montem aos ombros dos carregadores negros, agarrando-se às suas carapinhas. Esta imagem, por si só, é um murro no estômago, expondo a profunda desconsideração pela dignidade humana e o abuso inerente ao sistema colonial.

O ator principal, João Nunes Monteiro, tem um desempenho notável. Ele encarna Zacarias com uma intensidade e fragilidade que nos prendem ao ecrã. Acompanhamos a sua transformação de um jovem idealista a um homem confrontado com os horrores da guerra e a solidão avassaladora. A sua interpretação é tão visceral que nos faz sentir a febre, a fome e o desespero de Zacarias, numa viagem em que a linha entre a sanidade e a loucura se esbate.

A proximidade de Zacarias com o protagonista de "Apocalypse Now", o Capitão Benjamin L. Willard, é inegável, especialmente na forma como ambos são consumidos pela selva e pela insanidade que a guerra provoca. No entanto, a referência a Kurtz de "O Coração das Trevas" (que inspirou "Apocalypse Now") também se faz sentir, pois Zacarias, na busca por um batatal e por respostas, vai-se embrenhando cada vez mais na escuridão de uma realidade que o devora. Tal como Kurtz, a descida à "loucura" é um reflexo do ambiente hostil e desumano em que está inserido.

"Mosquito" é um filme que confronta o passado colonial português, desmistificando qualquer ideia de um "colonialismo bonzinho". É uma obra poderosa e visualmente impactante, que nos faz refletir sobre a guerra, a identidade e a resiliência do espírito humano perante as adversidades mais extremas. É um filme que, tal como o seu protagonista, nos persegue muito depois de a sessão ter terminado.

quarta-feira, junho 04, 2025

"O País dos Outros" – Colonos em Terra Alheia

 

No romance "O País dos Outros" de Leïla Slimani, somos convidados a conhecer a vida de Mathilde, uma jovem alsaciana que casou com Amine no fim da Segunda Guerra Mundial e foi com ele viver para Marrocos, mas também a complexa dinâmica entre colonizadores e colonizados. O título, "O País dos Outros", ganha ressonância ainda mais forte ao explorar a perspetiva dos colonos franceses que, apesar de habitarem e explorarem a terra marroquina, nunca a sentem verdadeiramente como sua.

Mathilde sente-se forasteira num casamento e numa cultura que luta para compreender. No entanto, o livro vai para além da experiência individual de Mathilde mostrando-nos como a comunidade de colonos, da qual ela faz parte, vive num limbo. Construíram as suas vidas, explorações agrícolas e negócios em Marrocos, mas o chão sob seus pés é instável. O país é "deles" (dos marroquinos) e sempre foi, independentemente da ocupação.

À medida que a intriga avança para o período que antecede a independência de Marrocos, a tensão intensifica-se. A elite colonial francesa, que antes detinha o poder e os privilégios, começa a sentir a iminente perda de controle. O que era visto como "sua" colônia está prestes a tornar-se novamente "o país dos outros". A presença dos colonos, de dominadores, passa a ser a de convidados indesejados, ou, na melhor das hipóteses, de estrangeiros sem raízes profundas. A própria Mathilde, apesar da condição de "esposa de marroquino", sente-se presa nesse conflito identitário e político.

Leïla Slimani retrata a inversão de papéis e sentimentos. O temor, a incompreensão e até o ressentimento dos colonos diante da ascensão do nacionalismo marroquino são palpáveis. Eles veem o fim de uma era, o desmoronamento de uma estrutura que lhes garantia poder e status. Em "O País dos Outros", a autora força-nos a refletir sobre a complexidade da colonização sob uma ótica muitas vezes esquecida: a daquele que, mesmo dominando, nunca pertenceu, e que agora enfrenta a inevitável devolução do "país" aos seus verdadeiros donos.