quarta-feira, dezembro 07, 2016

(DL) A desnorteada bússola de Franz Ritter

Na sua longa noite de insónia em Viena, Franz Ritter tem em Sarah a sua obsessão: inacessível objeto do desejo, não tem como dela se aproximar. Não só viu-a derivar cada vez mais para o Oriente, estando algures numa floresta malaia, como ele próprio foi acometido de depressão debilitante. Nas suas reflexões lamenta saber pouco da família dela que, oriunda da Argélia, se radicara em Paris depois da independência.
Aí uma de muitas coincidências os poderiam ter aproximado: ambos tinham vivido próximo um do outro, exatamente em sítios onde Balzac habitara. O mesmo Balzac, que em Viena conhecera o grande amor da sua vida: a Mme Hanska. E também ele um apaixonando pelo orientalismo, a moda criada e desenvolvida a partir da estadia forçada de Napoleão Bonaparte no Egito.
Todo o romance de Mathias Enard, que tem Franz por protagonista - «Bússola», aqui lida na versão francesa - tem uma erudição inesgotável, apresentada muito naturalmente sem parecer forçada.
Franz é também musicólogo e evoca o último concerto de Beethoven ao piano, quando estava já bastante surdo e não detetava a disparidade entre o que as suas mãos teclavam e os sons efetivamente ouvidos pela desconcertada audiência. No fundo algo que se assemelhava à equívoca relação amorosa, que teria desejado concretizar com Sarah: “interpretamos sozinhos a nossa sonata, conduzidos pelos respetivos sentimentos, sem percebermos quão desafinado está o piano. Os outros compreendem bem como soamos a falso, quiçá incomodados com a nossa humilhação que os perturba, sem serem tidos nem achados para ela.” (pág. 97)
Estava a Síria ainda muito distanciada da guerra civil, que agora a destrói, quando aí tinham partilhado experiências memoráveis, como a de uma inesquecível expedição ao deserto: sobretudo uma noite passada numa tenda de beduínos entre Palmira e Rusafa, quando o céu lhes parecera tão puro e as estrelas tão numerosas que quase tocavam no solo.”  (pág. 117)
Nesses dias Sarah sentira-se extremamente feliz no convívio com dezenas de orientalistas por muito que alguns lhe parecessem paranoicos nos ódios, que entre si alimentavam.
Alepo servira-lhe para visitar os locais por onde, décadas atrás, tinha passado a sua admirada Annemarie Schwarzenbach. Por esses dias, sempre na sua sombra, Franz vivera sob intenso sortilégio:  “éramos príncipes do Ocidente, que o Oriente acolhia e tratava como tais, com requinte, obsequiosidade, suave languidez, em conformidade com a imagem mítica construída na nossa juventude. Era como se vivêssemos nas perdidas terras das Mil e Uma Noites, apenas para nós ressuscitadas.” (pág. 118).
Essas eram terras de sons envolventes, que relembram a Franz a tese antiga, que poucos levaram a sério: a música erudita dos séculos XIX e XX muito devera ao Oriente. “O exotismo tinha um sentido, que incorporava em elementos exteriores, do domínio da alteridade (…) para sacudir a ditadura do canto religioso e da harmonia.” (pág. 120)

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