sexta-feira, dezembro 30, 2016

(AV) Ainda sobre o progressismo de Van Gogh

No dia 27 de dezembro , a propósito de uma frase atribuída à pintora Maria Beatriz numa entrevista ao «JL», púnhamos a questão de um eventual progressismo de Van Gogh.
Como não conseguíamos parecer definitivo, colocámos a possibilidade do escritor Reinaldo Ribeiro nos poder dar um contributo, porque o sabemos entusiasmado na tarefa de verter para português as muitas cartas trocadas entre Vincent e Theo Van Gogh, seu irmão.
Ele aqui está sob a forma de uma carta de que extraímos as informações que aqui partilhamos com quem se interessa pelo tema.
Ao Reinaldo só nos resta agradecer-lhe a colaboração convictos de podermos continuar aa contar com a sua generosidade sempre que os assuntos se proporcionem.

Vincent viveu na região mineira de Borinage entre Nov de 1878 e Set de 1880.
Tem como objectivo a intenção ser evangelista impelido por uma espécie de missionarismo, sustentado por uma fé calcada nos exemplos do seu Pai e do seu Tio, ambos pastores evangélicos, Cuida dos doentes, conforta os necessitados com a palavra de Deus, prega o Evangelho em reuniões religiosas e em casas particulares. Sente que aquela é a sua missão, apesar de sofrer todas as adversidades possíveis e de viver em dolorosa solidão. Sofre abnegada­mente as mesmas misérias que os trabalhadores e as suas famílias, desce às minas e tudo vê e tudo regista, particularmente as condi­ções infra-humanas em que os mineiros desenvolvem o seu trabalho na extracção do carvão.
É neste momento, neste ambiente e com esta experiência que se cristaliza no seu espírito o quadro ‘Os Comedores de Batatas’, mas que só efectivará em 1885.
É também no meio de toda aquela pobreza, junto às populações total­mente desprotegidas, que se insinua e se começa a revelar nele uma certa inquietação, quase imperceptível, quanto à religião e à fé. Mais tarde chega mesmo a escrever: «Se há algo que lamento amar­gamente é ter-me deixado seduzir durante algum tempo pelas abs­tracções místicas e teológicas, que me levou a fechar-me exagerada­mente em mim mesmo. Venho gradual­mente a mudar de ideias».
A vocação evangélica é substituída por uma obsessão galopante que o vai dominar até ao fim dos seus dias: a pintura e, especificamente, a pintura campestre ou rural.
Não notei em nenhuma carta ao longo deste período até Nov 1885 (data que a minha tradução já alcançou) qualquer referência ideológica ou conotação política. Tem sim, uma revolta contra as classes mais abastadas e ele refere-se especificamente aos ‘padres’ e aos marchands onde se inserem os membros mais proeminentes da sua própria família.
Não vi nada de progressismo. Ele quer apenas uma vida simples junto dos simples e quer trabalhar até à exaustão, sem qualquer benesse que o poder confere.
Transcrevo aqui, a primeira referência que ele faz aos ‘Comedores de Batatas’ na carta de 6 de Abril de 1885:
“Enfin, pretendo começar esta semana naquela coisa com os camponeses à volta de um prato de batatas, à noite ou talvez o vá fazer à luz do dia ou ambos, ou “nenhum”, dirás tu. Mas tenha sucesso ou falhe, vou começar nos estudos para as diferentes personagens.”
Não compreendo e nunca vi a expressão “Nas suas cartas, ele disse mesmo que queria que aquelas batatas fossem como pedregulhos que se pudessem atirar, como protesto.” Penso que é um abuso associar Vincent van Gogh a qualquer movimento contestatário. 

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