Se encontro semelhanças comigo no percurso de Julian Barnes para a descrença em Deus, o convívio com padres é decerto uma das mais óbvias.
No livro ele recorda um padre Hubert, que explicava o seu investimento na religião com o cinismo racionalista de um Pascal, já que no balanço entre o deve e o haver de tudo quanto até aí fizera na vida, sopesava bastante mais a possibilidade de existir um Paraíso no Além, só acessível aos que tivessem dado provas de credulidade a seu respeito. Daí que persistisse há muitos anos nessa aposta, por muito que o feitio o fizesse pender para atitudes ou brincadeiras muito pouco cristãs.
No meu caso pessoal tive mais sorte, porque a alternativa ao primarismo do discurso papista foi-me dada pelo padre Sobral mediante algo particularmente atraente para o meu então ideário adolescente: uma mistura de catolicismo com budismo em que existiria uma certa força universal orientada para a justiça e para o auto-aperfeiçoamento, que nos guiaria os passos para uma sociedade utópica, mas exequível.
Numa altura em que ainda não pusera de lado a hipótese de uma qualquer transcendência, aquela tese tinha a virtude de acompanhar um estilo soixante-huitard, em que parecia realista pedir o impossível e justificado o apego a um discurso político antifascista e anticolonialista, que se revelava atempado em pleno estertor salazarista-marcelista.
É claro que ficavam para trás as visitas a Fátima em que os rituais assumiam formas grotescas em completo desfasamento com algumas das vertentes mais jubilatórias da Bíblia.
Tomar a fé como a expressão de uma resignação perante o sofrimento e a aposta em improváveis milagres, que excluiriam o recurso à ciência em proveito de rezas e de mezinhas de charlatães, causara-me a primeira reacção de distanciamento perante a possibilidade de um Deus.
A realidade da morte viria a seguir, sobretudo a incompreensão para os atropelamentos de colegas de escola trucidados pelos rodados de camiões, que faziam secantes nos seus caminhos, ou para essas imagens chocantes provenientes do Biafra em que miúdos da minha idade ou mais novos surgiam exangues, condenados por interesses políticos e económicos inacessíveis à sua atónita compreensão. Como se poderia aceitar que um Deus omnipotente e omnisciente pudesse ficar indiferente a tais realidades?
E até os versos de um dos poetas acarinhados pelo regime de então («mas as crianças, Senhor/ porque lhes dais tanta dor?!.../ Porque padecem assim?!...») vinham fundamentar a desconfiança perante o emissário das orações dos crentes: afinal e se lá nos altos céus só existisse uma gritante ausência de quem as ouvisse?
O meu distanciamento de Deus teve, afinal, essa causa: a sua surdez perante os notórios sofrimentos de quem lhe devotava tal credulidade…
Como diria depois Saramago, Deus não era entidade em quem se pudesse fiar...
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