sexta-feira, agosto 26, 2011

«Nada a temer» de Julian Barnes


Agrada-me muito a leitura do que Julian Barnes escreve. Há uns anos lera com memorável agrado «O Papagaio de Flaubert», que ficara como um modelo possível dos meus próprios objectivos ficcionais pela mistura entre as experiências pessoais e uma erudição orientada para o enriquecimento das ideias ali transmitidas. Uma erudição que não servia para demonstração de quanto o autor sabia em termos enciclopédicos, mas que se canalizava para uma outra perspectivação da obra do grande escritor francês. Que volta a estar bastante presente no livro aqui em equação aonde se mantém a explicitação do fascínio de Barnes pela cultura francesa, e em particular pela que nela se caracterizaram as preocupações e valores dos finais do século XIX, inícios do século XX.
Por isso, quando soube da edição portuguesa de «Nada a Temer», reflexão sobre a morte e a religião, decidi de imediato a sua compra.
Claro que, mais do que não desiludir-me, o livro confirma a opinião sobre o autor: as horas dedicadas à fruição das suas palavras são um óptimo investimento pessoal para reconsiderar os meus próprios conceitos sobre os temas abordados e para incremento de conhecimentos sobre assuntos de que pouco sei (por exemplo, que vontade de partir à descoberta da obra de Jules Renard!).
Não é que a vida de Julian Barnes prime pela novidade: não existem aqui narrações de vivências exóticas nem muito menos heróicas. Aos sessenta e dois anos ele tem cultivado as letras e vivido entre Inglaterra e a França, retirando dos dias a matéria das suas ficções. A família não podia ser mais convencional dentro de uma lógica pequeno-burguesa: progenitores, que terão vivido uma conjugalidade convencional e medianas ocupações de professores, e um irmão, filósofo, com quem é forçoso reconhecer que os mesmos espaços e vivências resultaram em recordações completamente distintas.
Houve, é certo, uma avó, que se afastou da religião e abraçou, com idêntico fervor, as ideias comunistas  na sua vertente maoísta. Pessoalmente, enquanto leitor, teria gostado de conhecer algo mais sobre essa mulher singular com quem partilhei fascínios similares. Mas ela só surge enquanto exemplo positivo de um comportamento perante a religião, quando se trata de manifestar a descrença num qualquer deus, por muita falta. que ele nos faça.
Assim como se falará muito da morte e dos comportamentos perante esse nada para o qual todos tenderemos.
É claro que, pessoalmente, o livro expressa ideias muito próximas das minhas e por isso mesmo é fácil lê-lo com evidente prazer. Diferirei do autor pelo facto de nem sequer me situar numa lógica agnosticista, já que a idade tem aprofundado em mim as convicções ateias. Tenho para comigo a mesma atitude de José Saramago expressa no documentário «José e Pilar», quando a câmara lhe faz esvoaçar os cabelos tendo por trás a telúrica paisagem de Lanzarote: hoje estamos aqui, e depois deixamos de estar!
Porque haveremos de complicar o que é tão fácil de entender? Só por medo é que inventamos deuses e possibilidades esotéricas, que nos iludam essa tendência de regresso ao vazio de que surgimos, quando os nossos pais nos geraram.  Ora não existe nada a temer a não ser o processo por que morreremos, esperando sempre que seja tão indolor quanto possível. Ao contrário da maioria, que não se conforma com o facto de nada existir para além do momento da morte, é o momento anterior, que me intimida. Pelo que implique de sofrimento! Embora a medicina e o próprio corpo contenham paliativos suficientes para que custe o menos possível.
Mas o facto de não acreditar em aléns, tornam mais pertinentes as exigências quanto à conquista da felicidade máxima no presente ou em amanhãs que cantem num horizonte razoável da nossa existência.
Lenine tinha plenamente razão, quando apodava a religião de ópio do povo, porque essa urgência em conquistar a felicidade era e continua a ser torneada pelos bispos, rabinos, gurus e mollahs, que pregam o sacrifício, a resignação, o conformismo como modelo de virtudes a serem premiadas noutras vidas, com paraísos ou ressurreições ilusórias.
O livro de Barnes, embora não abordando directamente qualquer causa política, acaba por ser bastante esclarecedor quanto a uma divisão entre, por um lado, os que temem a morte e por ela fazem profissão de fé numa qualquer crença e os que a não receiam e, por isso mesmo, abraçam causas progressistas de onde a transcendência surge naturalmente expurgada. E, nesse sentido, torna-se num poderoso instrumento ideológico a favor do conhecimento, da cultura e do progresso civilizacional.

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