Há três anos, quando Alfred Brendel esteve pela última vez em Portugal na digressão em que se despediu definitivamente do seu público, não consegui bilhetes para estar presente num espectáculo, que se adivinhava memorável. É que não se tratava apenas da última oportunidade para testemunhar ao vivo o talento de um dos maiores pianistas da segunda metade do século XX: era, igualmente, a possibilidade para ver a grande música interpretada com aquilo, que nunca lhe pode escapar: a emoção do êxtase quase absoluto.
Compreende-se que a apresentação no canal franco-alemão ARTE do terceiro dos documentários realizados por Riedel com tal pianista figurou esta semana como prioridade absoluta na agenda. Justificadamente, concluo a posteriori. Porque se trata de um daqueles filmes memoráveis, que serão objecto de referência em muitas das conversas futuras em que quererei exemplificar o que é a sageza da velhice ou a passagem de testemunho entre gerações tão distantes.
É que entre Alfred Brendel e o seu aluno Kit Armstrong existem quase seis décadas de diferença. Razão para que nem passasse pela cabeça do velho pianista dar aulas a tão jovem discípulo. Como ele costuma dizer, para se ensinar alpinismo a uma criança não se vai necessariamente buscar um guia de montanha. Mas, confrontado com algumas gravações do miúdo de quinze anos, ele concluiu pela urgência em lhe dedicar o tempo necessário para lhe passar muitos dos seus conhecimentos obtidos em tão longa carreira. Que são sobretudo os dessas tais emoções, porque técnica é algo que não falta a Kit, nem rapidez de aprendizagem. Sobredotado por natureza, ele tinha atrás de si um percurso académico notável na área das matemáticas e da composição. Faltava-lhe essa capacidade para sair da rigidez das regras para soltar o corpo e torná-lo veículo da sensibilidade do compositor, seja ele barroco, romântico ou até contemporâneo. Por isso o vemos a tocar reportórios tão variados como o são Bach ou Mozart, Schubert ou Chopin, desembocando depois em Ligeti.
Mas, velha raposa, Brendel sabe que não pode cair num dos erros de palmatória, quando se trata de tutelar jovens talentos: por isso se irrita quando os jornais já dão o discípulo com o grande pianista do século XXI. A prosápia poderá fazê-lo estagnar num patamar evolutivo, que o impeça de ir mais além. Mimetizando, por exemplo, o trajecto de um Lang Lang a quem alguns classificam de clown em vez de pianista.
Nos seus cinquenta e cinco minutos o documentário é extremamente rico em informações, quase nos tornando alunos de uma verdadeira master class. Que será aquilo em que nos poderemos converter durante uma tarde de Fevereiro de 2012, quando o mesmo Brendel vier dar uma conferência à Gulbenkian com a exemplificação da mesma arte aqui transmitida a Kit.
E como refere um dos entrevistados do documentário, será muito curioso acompanharmos a carreira de Kit nos próximos anos, porque ou o veremos a cumprir as melhores expectativas do seu professor ou o daremos como mais um exemplo de um génio precoce, que se apaga ao chegar ao estado adulto.
Quase dá para apostar, que ainda muito ouviremos falar deste jovem artista, ainda em formação...
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