Uma das mais sinistras variações da arte de ser português reside numa certa mistificação da personalidade desse execrável pulha, que foi António de Oliveira Salazar.
Apregoado há uns anos numa produção televisiva como a personalidade histórica nacional mais admirada, correm sobre ele mitos sobre a sua suposta honestidade, o seu sentido de missão na defesa da «pátria» ou a capacidade para isentar este cantinho à beira-mar plantado dos efeitos mais terríveis da guerra, que alastrava em toda a Europa na década de 40.
Nenhuma evidência histórica suporta esses mitos, mas eles ainda perduram como contraponto a uma democracia burguesa ineficiente, de que vozes atarantadas sublinham os malefícios sem dela evocar os óbvios benefícios.
O filme de João Canijo traz de novo uma tese interessante, evidenciada pelas actualidades cinematográficas com que o regime pretendia disseminar a sua propaganda: existia um país miserável, aonde as pessoas andavam esfomeadas, esfarrapadas e descalças, omitido dessas imagens, que exibiam um paraíso de todos admirado, aonde reinava a ordem, a disciplina e a humildade.
Mandava quem podia, e obedecia quem devia, assim se defendia uma ditadura aonde muito poucos viviam à custa de uma maioria de explorados.
A chegada em massa dos refugiados da ameaça nazi vem trazer uma possibilidade de modernização das consciências, mas, infelizmente, o regime mostra-se hábil e segregar convenientemente esses estrangeiros por aqui em trânsito para paragens menos ameaçadoras. Os testemunhos de três desses circunstanciais visitantes, lidos em voz off, denunciam a tristeza reinante apesar da aparente festa organizada pelo regime em prol do chamado Mundo Português.
Estava-se, então, no apogeu do Estado Novo, quando todas as oposições (anarquista, comunista, republicana) pareciam destroçadas e Salazar iludia a mediocridade do regime com a farsa de um suposto império, que não demoraria vinte anos a ser ameaçado pelos ventos da História.
Cultivando essa fantasia de mãos dadas com uma Igreja, que tanto contribuía para fomentar o conformismo perante as gritantes injustiças da realidade, o fascismo luso só permanecia incontestado à conta do analfabetismo de 70% dos seus cidadãos e do interesse geoestratégico das potências do Eixo e aliadas em manterem em banho maria uma área geográfica, que as poupasse a maiores esforços de logística militar.
Olhando criticamente este filme de João Canijo percebemos melhor a tenebrosa herança deixada por um ditador, que ainda hoje corrói a identidade do povo que somos.
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