Acontece-me o mesmo que a Saramago: os deuses são-me entidades estranhas, que não fazem qualquer sentido perante os avanços imparáveis da ciência na explicação das coisas. Pior, elas que deveriam ter por missão a fraternidade, a união entre os homens, muito contribuem para os desavir, para lhes atiçar ódios assassinos.
A grande virtude deste filme de Amenabar, muito desprezado pela crítica e pelos canais de divulgação de filmes na sua estreia, é a denúncia do carácter fundamentalista de todas as religiões com gente insegura a querer forçar os outros a acreditar naquilo que se forçam acriticamente a aceitar como a Verdade. Como se existisse uma só verdade, como se o conceito de relatividade não estivesse presente em tudo quanto vivenciamos desde nascidos.
A protagonista de «Ágora» é a filósofa Hipasia, que vivia na Alexandria do século IV a.C. Astrónoma obcecada pela aparente falta de convergência entre o conceito de perfeição representada pelo círculo e o movimento dos astros testemunhado pelos seus olhos atentos, Hipasia vive para a Filosofia, indiferente aos amores, que suscita quer no seu discípulo Orestes, quer no seu escravo Davus.
Os tempos são de decadência do império e de progressiva afirmação política dos cristãos, que não recuam perante as maiores insídias para se imporem enquanto «verdadeira religião».
Quando os crentes das antigas religiões do Império querem reagir já é demasiado tarde e abrem caminho ao domínio dos rivais por toda a cidade, a começar pela célebre biblioteca, sujeita à sua vandalização.
Autênticos talibãs da época, os cristãos irão ilegalizar sucessivamente esses cultos e expulsar os judeus, eles mesmos demonizados pelo suposto papel na morte de Cristo.
Hipasia acaba por ser um pequeno obstáculo nessa progressão para a tomada do poder, tanto mais que serve à perfeição para contestar Orestes, entretanto nomeado prefeito do Império e recorrendo amiúde aos conselhos da antiga mestra.
Capturada pelas milícias cristãs, Hipatia está condenada ao martírio de que a livra Davus ao asfixiá-la antes de ser apedrejada pelos tenebrosos assassinos.
Ao morrer fica aberto caminho para a tomada do poder por Cirilo, o fanático líder capaz de movimentar as multidões ignorantes ao sabor dos seus interesses e - não é por acaso - hoje idolatrado pelo Vaticano como um dos seus «sábios doutores».
Tratando-se de uma superprodução espanhola, «Ágora» acaba por ser um projecto politicamente relevante ou não seja o país vizinho ainda demasiado condicionado por uma Igreja influente, que depois de ter tomado parte activa nos crimes da Guerra Civil, mantém o mesmo discurso repulsivo a respeito de todos quantos contrariam os seus preconceitos e as suas idiossincrasias.
Continua evidente a certeza de existir por trás de cada cristão um potencial inquisidor!
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